Meu amigo Charles

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Por Matthew Shirts
Atualização:

"Estão colocando em questão a orientação sexual dos torcedores do Internacional", berrava eu, em inglês, para meu amigo americano Chuck, no Estádio do Pacaembu, na noite de quarta-feira passada. Ele deu um sorriso maroto. Chuck me conhece bem. Ficamos amigos ainda nos tempos da faculdade na cidade de Berkeley, na Califórnia, nos últimos anos da década de 70. Respondia eu com certo cuidado a uma pergunta sua, sobre o que berrava a torcida corintiana. Chuck fala bem espanhol, mas tem algumas dificuldades para entender português. Estávamos acompanhados de nossos filhos caçulas, de 10 e 6 anos, respectivamente. Os dois, por coincidência, se chamam Samuel. E como são pequenos, fazia esforço para manter a conversa num certo patamar de civilidade, sem recorrer a palavras ofensivas ou chulas. O sorriso irônico do Chuck ficou por conta de uma troca de emails anterior, um pouco antes da sua viagem para São Paulo. Eu me gabara da parada gay em São Paulo, chamando-a de "a maior do mundo" como prova da urbanidade avançada da nossa cidade. Ele talvez estivesse pensando que a torcida corintiana colocava em questão minha vã sociologia. Não sei. Era quase impossível conversar ali em meio a tanta gritaria. Chuck, cujo nome completo é Charles F. Walker, trabalha como professor de História da América Latina na Universidade da Califórnia em Davis. É casado com a antropóloga peruana Zoila Mendoza. Parou em São Paulo, vindo do Rio, a caminho do Peru, onde vai dar um curso sobre história colonial andina. Quando perguntei a meu filho Samuel, de 6 anos, se sabia onde fica o Peru, aliás, ele se saiu com esta: "Sim, em último lugar", numa referência à classificação da seleção daquele país nas eliminatórias da Copa do Mundo. Nada como o esporte para ensinar geografia... Aproveitamos a visita do Chuck para voltar ao Museu do Futebol, também no Estádio do Pacaembu. É meu ponto turístico favorito em São Paulo. Recomendo-o vivamente. O melhor museu do País. Conta a história contemporânea do Brasil com charme e delicadeza. É divertido. E há, nele, instalações comoventes. Não me canso de assistir aos filmes das torcidas projetados debaixo das arquibancadas do Pacaembu, com direito a cheiro de terra e concreto. É uma obra de arte incomum. Dá calafrios. Comove. Não conheço nada parecido em lugar nenhum do mundo. De modo geral, o brasileiro não é muito chegado a museu. Mas esse vale a pena. Até mesmo para quem não é fanático pelo esporte bretão. Sem falar do próprio Estádio do Pacaembu, como se sabe, obra-prima da arquitetura art déco. O jogo do Corinthians contra o Internacional, primeiro de dois finais da Copa do Brasil, saiu melhor do que a encomenda. Somos todos nós, Chuck, eu, e os dois Samuel, corintianos. Conseguimos ingressos na numerada. Tentei explicar por que era chamada assim, embora não houvesse números impressos nos ingressos nem nas poltronas. Mas sem êxito. Vou ter de estudar mais. O brasilianismo amador nos coloca sempre novos desafios. Foi lá e cá o jogo. Duas equipes ótimas. A torcida corintiana estava inspirada. Fez a sua parte. E o time também. Jorge Henrique marcou um gol bonito. Ronaldo perdeu um e fez outro, lindo. Felipe conseguiu conter os avanços insistentes do adversário, como de costume, com duas ou três defesas milagrosas. A partida foi digna de Nelson Rodrigues, a quem havíamos assistido no museu no dia anterior. Pensei nele. Na saída, enquanto escalamos as poltronas em busca do portão, centenas de torcedores corintianos insistiam em provocar os colorados, ali do outro lado da cerca, com gritos de "gaúchos veados, gaúchos veados". Acho desnecessário isso, mas é do jogo, como se diz, desde que feito na paz. Mas Chuck não deixou por menos. Com outro sorriso irônico, berrou uma pergunta ali no meio da multidão: "Matt, gaúcho eu sei o que é, mas o que significa ?veado??" Estão colocando em questão a orientação sexual do adversário, respondi. "Acho que eu podia ter adivinhado", replicou.

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