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Meu amigo, Carlos

Por Matthew Shirts
Atualização:

Assistir à negociação que Carlos Bakota conduzia ao desembarcar do táxi já me deixou feliz. Aguardávamos eu e Antônio Pedro Tota, na calçada da Fradique Coutinho, no bairro da Vila Madalena, no ponto combinado. Não conseguíamos ouvir o que dizia o Carlos. Mas dava para ver que falava muito e gesticulava. Carlos é desses raros americanos que aproveitam todos os encontros, qualquer contato com gente, para aprender mais alguma coisa a respeito do mundo, palpar os contornos da cultura local. Na parte da manhã do mesmo dia, saberia eu depois, ele batera à porta de um templo budista na Liberdade, chamara o monge, e conseguira uma almofada para poder meditar sozinho, depois de explicar que já passara ali centenas de horas da sua vida. Conheci o Carlos em 1980, no desembarque do aerporto de Congonhas (ainda não havia Cumbica), onde fora me receber. Ele morava aqui em São Paulo, na época. Era eu um aluno de faculdade que voltava ao Brasil pela primeira vez, dos Estados Unidos, com a intenção de fazer o terceiro ano do meu curso na USP. (Para facilitar minha identificação no aeroporto, vestira eu uma camiseta do Corinthians - juro). Carlos dirigia o programa de intercâmbio de estudantes naquela prestigiosa universidade. Depois de deixar a bagagem no seu apartamento, na Rua Peixoto Gomide, ele me explicou nossa primeira tarefa. Elaborava, dizia, um estudo sobre a antropologia da sexualidade brasileira. Havia um cartaz da revista Playboy nas bancas da Avenida Paulista de grande significado iconográfico. Trazia duas imagens. Numa, a mulher ostentava duas bolas de futebol americano no lugar dos seios e a seguinte ponderação: ''''o sonho americano''''. Na outra imagem havia duas bolas de futebol-futebol sobrepostas às nádegas da mulher e a legenda: ''''o sonho brasileiro''''. Nossa missão acadêmica: roubar o pôster. Desta vez Carlos, que hoje vive em Washington D.C., e se parece com Sean Connery, voltava a São Paulo via Casablanca, no Marrocos. Arrumara um emprego ministrando palestras sobre a história do Brasil num cruzeiro de turistas europeus. Marcou comigo e com o Tota na Fradique Coutinho para ver a exposição de jóias do meu filho, Lucas. Depois iríamos ao restaurante do Pasquale, ali do lado da estação de metrô Sumaré, encontrar ainda outro professor, José Carlos Sebe, e também o filósofo popular Marcos Sismotto. Seria uma bela reunião de fim do ano. Carlos entrou no restaurante do Pasquale entusiasmado, relatando histórias da sua viagem. Fizera uma escala em Salvador, onde fechara o corpo com uma mãe-de-santo. ''''Olhei nos seus olhos e vi que ela acreditava naquilo'''', narrava. ''''Ela olhava nos meus e via que sou bobo.'''' A mãe-de-santo levou uma grana do Carlos, o que inspirou o Marcão a ponderar sobre o potencial de uma empresa dedicada ao fechamento do corpo nos Estados Unidos. Chamaria a técnica, dizia, de ''''body closing''''. Carlos atravessou o Atlântico discutindo a cultura brasileira com os europeus. Apresentara aos alunos trechos do filme Os Três Cavalheiros, de Walt Disney, no qual Pato Donald se apaixona pela Carmen Miranda e briga por ela com outro pretendente, apesar deste ser um malandro, na avaliação do Zé Carioca. Para Carlos, a melhor frase do filme é do próprio Zé Carioca: ''''Oh Donald, he is a malandro!'''' Repetiu-a algumas vezes durante a noite no Pasquale. Ponderou que o Brasil deveria ser das poucas culturas que faziam a distinção entre o bom malandro (Zé Pelintra) e o mau malandro (Exu). Explicou aos turistas europeus, ainda, que os portugueses eram globalizadores antes mesmo de descobrir o Brasil, que dom Pedro I havia sido uma espécie de Bill Clinton do século 19 e ensinou-os a batucar. Ao adentrar a Baía de Guanabara mandou colocar o hip-hop de Gabriel, o Pensador, no sistema de som do navio. ''''A outra opção era Pat Boone'''', me dizia. ''''Não dá para entrar na Baía de Guanabara ouvindo Pat Boone.'''' No que eu tinha de concordar.

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