Metropolitan abriga Bacon, pintor do desespero contemporâneo

Retrospectiva marca centenário de nascimento do artista que retratou o lado feio da humanidade

PUBLICIDADE

Por Tonica Chagas
Atualização:

Pintor da obra contemporânea mais cara vendida em leilão até agora - seu Triptych, 1976 foi adquirido em maio do ano passado na Sotheby?s de Nova York por US$ 86 milhões pelo bilionário russo Roman Abramovich -, Francis Bacon (1909-1992) tem seu centenário de nascimento marcado pelo Metropolitan Museum com uma retrospectiva produzida com a Tate Gallery, de Londres, onde a exposição foi exibida no ano passado. Como na literatura existencialista de Sartre e Camus, o corpo da obra de Bacon é o corpo de delito em que grande parte da humanidade se transformou depois da 2ª Guerra Mundial. Criaturas contorcidas e borradas, sozinhas ou com o movimento decupado em trípticos, refletem algo que ninguém quer ver no espelho. Numa das últimas salas de Francis Bacon: A Centenary Retrospective, que fica em cartaz até o dia 16, há uma seleção de materiais recolhidos da antiga cavalariça londrina, onde o artista morou e transformou no estúdio caótico que usou nos últimos 30 anos de vida. A maior parte é de fotografias amassadas ou rasgadas e depois recompostas. O que parece ter saído de um monturo de lixo são registros do método de trabalho dele e meios para interpretá-lo. Depois da morte de Bacon, o estúdio foi reconstruído numa galeria de Dublin, cidade onde ele nasceu, e o material que estava lá hoje pertence aos arquivos da Tate Gallery. Separar aquele material deve ter sido tão perturbador quanto é observar tantos quadros dele juntos. Não há uma só imagem entre as 66 telas da retrospectiva que não transmita desespero, angústia, dor ou completa alienação. Como o próprio pintor esboçou numa entrevista em meados dos anos 80, ele não via a vida de outra maneira mesmo se tivesse pintado flores. A vida dele foi bem diferente da que tinha a família tradicional britânica à qual pertencia. A relação com o pai sempre foi difícil e ele dizia ter uma certa atração sexual pelo ex-capitão do Exército inglês, criador de cavalos de corrida responsáveis pelos ataques de asma do filho. Sem completar os estudos secundários e nenhuma instrução artística formal, entre os 16 e 17 anos ele lia a filosofia niilista de Nietsche e, numa viagem a Paris, viu uma exposição de obras recentes de Picasso, a maior inspiração para se tornar pintor. Quando voltou a Londres, em 1929, Bacon passou a pintar esporadicamente, mas dedicava mais tempo ao jogo, fazendo dinheiro em pequenos roubos, encontros com outros homens, servindo como criado de ricos antes de trabalhar como decorador e desenhar móveis. Nos anos 30, ele participou de exposições coletivas e chegou a promover uma individual por conta própria, mas só decidiu se dedicar inteiramente à arte em 1944. Quando se estabeleceu como um dos nomes mais célebres da pintura do século 20, proibiu a inclusão nas suas retrospectivas de qualquer trabalho produzido antes do que considerava como sua maturidade na pintura. Entre os quadros que abrem a exposição no Met há apenas um da década de 30. Crucifixion, de 1933, é a primeira das pinturas dele que se conhece sobre um tema repetido muitas vezes durante a carreira de quase 50 anos. O pequeno óleo sobre tela teve destaque em Art Now, panorama da arte moderna publicado em 1933 pelo crítico e ensaista inglês Herbert Read. O trabalho dele, então com 24 anos, foi reproduzido na página oposta à que trazia um dos quadros de banhistas pintados por Picasso em 1929. Mas Bacon só mostraria publicamente outro trabalho dez anos depois, ressurgindo então com Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion. Inspirado em pinturas medievais sobre a crucificação e nas Fúrias que atormentam Orestes depois de ele ter matado a mãe, o tríptico criado na atmosfera sombria da Londres bombardeada pelos alemães é como uma Guernica de Bacon. ACASO Entre o fim da 2ª Guerra Mundial e o início dos anos 50, suas telas já trazem algumas das principais figuras - personagens autoritárias, bocas escancaradas, corpos distorcidos ou dissolvendo-se em ectoplasmas - com que Bacon retrata o lado animalesco do ser humano, sobretudo do homem. Elas aparecem em Painting, de 1946, uma interpretação tenebrosa sobre o pós-guerra na Europa. Adquirido em 1948 pelo MoMA, de Nova York, este foi o primeiro quadro dele a entrar para a coleção de um museu. A carcaça de boi suspensa em forma de cruz por trás de um homem de boca aberta, segundo seu autor, surgiu por acaso, um elemento que ele via como essencial no trabalho. "Acho que tentei fazer um gorila num milharal", contava Bacon. "Depois quis fazer um pássaro pousando e então, aos poucos, todas as marcas que fiz sugeriam essa outra imagem, que é totalmente acidental." Mas sabe-se que ele colecionava fotos de propaganda nazista, algumas delas de homens gritando em microfones, e que o boi retalhado é referência a um quadro de Rembrandt. "Sou influenciado por qualquer coisa", dizia ele. "Posso ser influenciado pela foto de uma notícia ou alguma que encontre em qualquer revista, tanto quanto posso ser influenciado por Velázquez." Mais do que influência, uma das pinturas de Velázquez, Retrato do Papa Inocente X, de 1650, virou obsessão para Bacon, que tinha dezenas de reproduções dela e, mesmo tendo passado uma longa temporada em Roma, afirmava nunca ter visto o original na Galeria Doria-Pamphili. Bacon usou o papa de Velázquez em mais de 40 pinturas e a retrospectiva exibe meia dúzia delas. As figuras dele dificilmente estão paradas e muitas nasceram do escrutínio intenso das fotografias de animais e pessoas feitas no fim do século 19 pelo inglês Eadweard Muybridge, pioneiro no uso simultâneo de diversas câmeras para capturar movimentos. Nos quadros da segunda metade da década de 50, ele passa a experimentar detalhes para definir espaços na pintura, quase sempre emoldurando as figuras em estruturas que parecem caixas. Com títulos óbvios ou neutros demais para pelo menos apontar a complexidade do que ele transpunha para a tela, há muitas imagens difíceis de decifrar, em parte por causa do seu método de trabalho e também porque muitas são reflexos implícitos da sua vida pessoal numa Inglaterra que, até 1967, punia homossexuais com a prisão. No início dos anos 60, das viagens para Mônaco, França e Marrocos acompanhado por Peter Lacy, um ex-piloto de guerra, violento e alcoólatra, surgiram experiências tão distintas quanto o desfecho de pinceladas carregadas com tinta de cores vibrantes - em paisagens do Norte da África ou em homenagens a Van Gogh - como a diluição de azuis e marrons - em corpos que lembram cadáveres em cenas de crime. Também naquela época Bacon voltou a pintar trípticos e, em 1962, a primeira retrospectiva dele exibida pela Tate Gallery o firmou como um dos principais figurativistas modernos. Na véspera da abertura da exposição, um telegrama comunicava a morte de Lacy no Marrocos. A história se repetiu em 1971, às vésperas da abertura da grande exposição individual dele no Grand Palais, em Paris. George Dyer, o amante por quem o pintor contava ter se apaixonado ao encontrá-lo tentando roubar seu estúdio e com o qual vivia desde 1963, morreu de overdose no banheiro de um hotel na Rive Gauche, onde eles estavam hospedados. A maioria dos quadros nas duas salas da retrospectiva no Met que reúnem retratos de amigos de Bacon são de Dyer e só um deles foi pintado antes da morte dele. Bacon não pintava com gente por perto, nem o modelo dos seus quadros, nem mesmo Dyer. Por cerca de 20 anos usou como base para retratos fotografias tiradas, conforme as instruções dele, pelo amigo John Deakin, que foi fotógrafo da Vogue britânica. Com a morte da maioria das pessoas que gostava de pintar, ele passou a produzir cada vez mais autorretratos, usando o mesmo método ou reinterpretando o próprio rosto que registrava em cabines fotográficas. No começo dos anos 80, ele explorou a paisagem com a mesma intensidade dedicada à figura humana nas décadas anteriores. Apesar de inabitadas, suas dunas, planícies ou calçadas também sugerem a presença de personagens cercados de violência. Naquela última fase, ele adaptou outras fontes como material partindo da poesia de García Lorca, por exemplo, para explorar a vulnerabilidade dos toureiros. Os últimos 16 anos de vida ele compartilhou com John Edwards, um ex-barman semianalfabeto e 41 anos mais jovem que ele. Como Bacon queria que suas obras fossem vistas, todos os quadros na retrospectiva são envidraçados. O reflexo de quem olha para eles se torna parte de uma composição existencialista.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.