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Meneses seduz Campos com justiça

Afora as incertezas políticas, o evento teve momentos brilhantes com o violoncelista e sua parceira, a pianista Fany Solter

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Indefinições no campo da política cultural costumam custar caro. E não apenas para os diretamente envolvidos, mas sobretudo para a população, que vê a Osesp e o Festival de Inverno de Campos do Jordão, os dois principais projetos musicais dos últimos anos em São Paulo, em tensos e angustiantes momentos de total incerteza. Os primeiros dez dias do 39º Festival só reforçam essa praga provinciana que historicamente acomete a vida musical brasileira. O diretor-artístico, maestro Roberto Minczuk, e o diretor-executivo, Clodoaldo Medina, amanheceram demitidos na manhã de quarta-feira. Acordaram no dia seguinte confirmados pelo próprio secretário de Cultura, João Sayad. Por isso, e mesmo tendo contrato apenas até dezembro próximo, Minczuk sentiu-se fortalecido e aproveitou o segundo fim de semana para acenar até com a provável temática da próxima edição, a 40ª, em julho de 2009: música francesa, a julgar pela pista musical do extra no concerto com a Orquestra Sinfônica Brasileira no sábado: a célebre Marcha do Toreador da Carmen de Bizet. Musicalmente, o violoncelista Antônio Meneses dominou com justiça a cena em Campos. Na tarde-noite de sexta-feira, demonstrou mais uma vez seu enorme amadurecimento na prática camerística. Por um lado, frustrou os que aguardavam sua interpretação da sonata para violoncelo de Chopin (as partes de piano não chegaram a tempo às mãos de Fany Solter, sua parceira). Mas, de outro, compensou-nos com dois fogos de artifício incandescentes: as três peças-fantasia Opus 73 de Schumann e a Sonata para Violoncelo de Debussy. Juntas, contam pouco mais de 20 minutos de música. Mas são extraordinárias. Schumann, pelo contagiante cantabile de temas encantatórios que colam nos ouvidos. Debussy, em obra de plena maturidade, pela sua marca registrada, uma mistura rara de humor sarcástico e melancolia poética. Fany Solter foi uma parceira à altura de Antonio. Na primeira parte do concerto na capela do palácio de inverno, duas estréias mundiais de compositores brasileiros e o celebrado ciclo das Sete Romanzas Sobre Texto de Alexander Blok, de Dmitri Shostakovich. O belo e curto Vocalise de André Previn serviu como ''warm-up'' para o grupo, formado por Meneses, a soprano Rosana Lamosa, Daniel Guedes e Fany Solter no frio fim de tarde. Tanto Marco Padilha como Cirlei de Hollanda escreveram três canções cada um somente com acompanhamento de violoncelo. Ambos possuem excelente domínio técnico, mas não chegam a resultados excepcionais. Talvez Cirlei, villa-lobiana e generosa nas melodias, tenha construído canções mais cativantes, sobre poemas de Drummond. O desnível em relação ao maravilhoso ciclo de Shostakovich ficou claro quando Lamosa, inspirada, obteve ótima performance neste ciclo em que contracena com cada um dos instrumentos em separado, depois em duos e só na derradeira canção, Música, conta com o trio. A rigor, apenas Fany Solter parecia meio desencaixada do grupo (quem gostou pode conferir CD Warner de 2006 do Beaux Arts Trio, ou seja, Daniel Hope, Menahem Pressler e Antonio Meneses, e Joan Rodgers). QUIXOTE No sábado, Antonio foi novamente a estrela. Desta vez no Auditório Claudio Santoro, em concerto da Orquestra Sinfônica Brasileira. Ele brilhou no Don Quixote Opus 36, de Richard Strauss, obra que gravou em 1994 com a Filarmônica de Berlim e Karajan para a Deutsche Grammophon. A seu lado, atuou como Sancho Pança o jovem Gabriel Marin, que há quatro anos foi bolsista em Campos e vencedor da Bolsa Eleazar de Carvalho e hoje é viola-solo da OSB. Ótima a proposta de Minczuk aliando a música com a projeção de textos e gravuras de Doré e Dalí: capturou o público, fazendo todos acompanharem no detalhe, a cada variação, as aventuras e desventuras do genial cavaleiro andante. Pena que por vários momentos a orquestra tenha encoberto o cello-Quixote e a viola-Sancho Pança - desatenções musicalmente imperdoáveis. Trata-se, porém, de partitura difícil, em que a orquestra no geral foi bem. Um dos destaques foi o spalla Pablo de Leon. Não. Você não leu errado. Este Pablo é o mesmo Pablo de Leon spalla da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo, que no sábado atuou como spalla da OSB. Talvez as 20 vagas ainda não preenchidas na orquestra sejam responsáveis por certo desequilíbrio. Afinal, nem sempre funciona bem o enxerto de músicos de outras orquestras. A primeira parte teve dois tempos distintos. Na fogosa Abertura Candide de Leonard Bernstein, Minczuk foi perfeito. Manteve o alto nível nos Prelúdios, poema sinfônico de Liszt. A orquestra, porém, se respondeu muito bem em Bernstein, claudicou um pouco em Liszt. Antonio escolheu bem o extra,um movimento de uma das suítes para violoncelo-solo de Bach. Só Bach mesmo seria adequado naquele momento, logo depois de Strauss descrever com maestria compungida, no violoncelo, a morte do fidalgo Quixote. O clima de encantamento, porém, rompeu-se com extras no mínimo desnecessários.

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