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''Memória é base de toda identidade''

Magris fala de um tema constante em sua obra e de questões da Europa atual

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

Na continuação da entrevista, o escritor italiano Claudio Magris, autor de O Senhor Vai Entender, discute os sentidos da memória e questões prementes na Europa de hoje, como a imigração. A memória é uma constante em seus livros. Vivemos hoje em um momento político no qual a memória é empregada muitas vezes de maneira reacionária. Como definiria a importância da memória? A respeito dessa ambivalência da memória, do seu aspecto positivo e negativo, particularmente hoje, escrevi um breve ensaio, publicado depois em livro intitulado La Storia Non È Finita. Há dois aspectos da memória. Um absolutamente positivo, um grande valor. Não por acaso na mitologia grega Mnemosina, a Memória, é a mãe das Musas, ou seja, de todas as artes, do que dá forma e sentido à vida, protegendo-a do nada e do esquecimento. Na tradição hebraica, um dos atributos mais profundos de Deus é o de lembrar "até a terceira, a quarta, a centésima geração". Essa memória é ao mesmo tempo justiça e caridade, a recusa a permitir a extinção do mal e o resgate de suas vítimas. Nesse sentido, o ato da lembrança é caridade e justiça para as vítimas do mal e da dor, indivíduos e povos desaparecidos muitas vezes no silêncio e na escuridão. A memória é a resistência a essa violência, à violência infligida às vítimas, constituída pelo esquecimento. A memória é também o sentido do caráter coral do conjunto de todos os homens, até daqueles não visíveis naquele momento, que ela descobre estarem presentes. As pessoas, os valores, os afetos, as paixões "são": embora estejam vinculados a um momento temporal preciso, não pertencem apenas a ele, assim como um poema escrito em determinado dia de determinado ano não pertence apenas àquela data, mas ao presente da vida e continua existindo e crescendo. Esse rememorar, estreitamente relacionado ao amor, tem muito pouco a ver com a memória mecânica, com a capacidade de registrar e guardar muitos dados, e nada tem a ver com a chorosa nostalgia sentimental do passado, transfigurado e falsificado, como se tivesse sido melhor do que o presente, mesmo quando foi horrível e repleto de desgraças. A memória é o fundamento de toda identidade, individual e coletiva, e baseia-se no livre conhecimento de nós mesmos, até nas nossas contradições e carências, e não na remoção, que cria medo e agressividade. Guardiã e testemunha, a memória é também a garantia de liberdade; não por acaso as ditaduras procuram alterar ou destruir a memória histórica. Os nacionalismos a falsificam, a violentam, o totalitarismo brando de muitos meios de comunicação a apaga. Mas há também uma memória negativa, que pretende ligar irreparavelmente os homens ao passado, petrificá-los com o rosto de Medusa. Uma memória rancorosa que acorrenta a alma à lembrança dolorosa de todas as injustiças sofridas, mesmo distantes, talvez até de séculos atrás, e a necessidade de apresentar sua conta também a herdeiros ou a herdeiros futuros que não têm culpa nenhuma, de vingá-los indiscriminadamente, perpetuando assim a cadeia de violências e vinganças, alimentando novas tragédias. É essa a memória, por exemplo, que alimenta, envenena e falsifica os nacionalismos. Por outro lado, a memória criativa é liberdade, também liberdade da obsessão de lutuosos eventos lembrados: "Atira atrás de ti a tua dor e serás livre", diz Rebeca em Rosmersholm, de Ibsen. A memória olha para a frente; carrega consigo o passado, mas para salvá-lo, assim como são recolhidos os feridos e os mortos que ficaram para trás, para levá-lo de volta à pátria, à casa natal que cada um, afirma Bloch, acredita em sua nostalgia ver na infância e que, entretanto, se encontra no futuro, em um futuro livre e liberto. Hoje, infelizmente assistimos, quase em toda parte, a uma recuperação da memória em sentido negativo, memória como obsessão para atiçar novamente o ódio. O tema da imigração tem despertado todo tipo de reações extremas. Como vê a questão? A imigração tem infinitos aspectos, dos econômicos aos culturais. Hoje, as civilizações se deslocam e se mesclam, povos e estirpes distantes se encontram e suas visões de mundo - religiosas, políticas, sociais - vivem lado a lado, em um politeísmo de valores, significados, tradições, costumes e instituições que ninguém pode ignorar. É um processo que enriquece as nossas culturas e ao mesmo tempo desperta medos e obsessões de defesa. Na globalização, toda identidade sente-se ameaçada, teme dissolver-se e desaparecer, e então exaspera a própria particularidade, e torna-a uma diversidade absoluta e selvagem, um ídolo - que, como todos os ídolos, impele facilmente à violência e ao sacrifício cruento. Algo semelhante ocorreu na Grécia do século 5º a.C. com a dissolução das antigas comunidades familiares-tribais no Estado, na Polis; processo do qual nasceu em parte a tragédia grega. As respostas intolerantes às atuais transformações do mundo são perigosíssimas e bárbaras e impedem gravemente - com obstáculos de todo gênero - esse processo de formação de uma nova e mais autêntica universalidade; um processo instigante, porque pela primeira vez na história, através de um diálogo que desconhece fronteiras, está nascendo ou poderia nascer, embora entre mil perigos e horríveis distorções, uma universalidade realmente universal, expressão das civilizações de toda a Terra, não apenas do Ocidente ou do Oriente. Obviamente, é preciso envidar todos os esforços para aceitar o maior número possível de pessoas que se dirigem dos países mais pobres e de condições de vida em geral desumanas, para os mais ricos ou pelo menos onde é possível viver melhor; nesse sentido, cada um de nós deve estar profundamente empenhado. Também em reconhecer o enriquecimento proporcionado por esses novos compatriotas e vizinhos. Naturalmente, não devemos ser ingênuos; devemos saber que esses contatos poderão criar situações difíceis, principalmente quando o número de imigrados crescer a ponto de ser objetivamente insustentável em um determinado país, até criar situações extremamente difíceis. É evidente que se os milhões de pobres da Índia fossem para a Itália, não haveria lugar para todos, tanto em termos físicos quanto materiais. Por isso, a política de imigração deve ser global; na Europa, pelo menos unitariamente européia, mas mundial, o que, evidentemente, nos dias de hoje, não passa de uma esperança utópica. Além disso, também em termos culturais, não devemos ignorar que os crescentes contatos entre culturas diferentes, que tanto nos enriquecem, poderão criar situações difíceis, nas quais a escolha entre o devido relativismo cultural e a afirmação de valores irrenunciáveis poderá impor-se de forma dramática. Pessoas pertencentes a outras culturas deverão tornar-se européias conservando sua peculiaridade, sem serem brutalmente absorvidas pelo modelo ocidental. Mas poderão ocorrer também situações de conflito, nas quais será dolorosamente necessário escolher, no máximo relativismo cultural possível, um mínimo de valores éticos inegociáveis. Alguns valores não podem mais ser discutidos, como por exemplo, a igualdade de direitos de todos os cidadãos independentemente da raça, do sexo ou da religião. Se uma cultura contestar esses valores, será preciso defendê-los. Você sempre confessou fascinação pelo cinema. Projeto a realizar? Sim, o cinema era um sonho meu. O meu primeiro romance, Illazioni Su Una Sciabola (Ilações em torno de um sabre), nasceu na minha mente como, ou pelo menos também como, projeto de um filme. Contar com as coisas, com a realidade, com os rostos, era algo que me fascinava e me fascina. Até agora, esse amor se frustrou. Recentemente, Ermanno Olmi, Maurizio Zaccaro e eu escrevemos um roteiro extraído desse livro. Gostaria muito que este projeto pudesse concretizar-se. Quem sabe...

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