Melhores do ano (1)

PUBLICIDADE

Por Daniel Piza
Atualização:

O que esses chatos que vivem dizendo que os livros e os jornais vão desaparecer não conseguem abolir é o poder transformador da leitura, em papel ou não. Desde 1996 faço todo ano esta lista dos melhores produtos e eventos culturais e verifico todo ano quantos livros interessantes foram publicados. Meu primeiro texto em jornal foi uma resenha de livro e espero que meu último venha a ser também. Não que os livros sejam mais importantes que a música, as exposições e os filmes, mas o fato é que toda semana há um livro para ler e, acima disso, a leitura perpassa tudo, a começar pela absorção das outras artes. É impossível distinguir a consciência humana dos outros animais se não se levar em conta sua profunda ligação com a estrutura verbal. É essa voz interior que permite que um livro se detenha dez páginas sobre um chapéu, digamos, e uma narrativa audiovisual não possa ficar dez minutos nele. Isso não significa que a leitura exija lentidão; ao contrário, ela amplia o poder de concentração e faz que você extraia mais em menos tempo. Mais uma vez o maior número de destaques ocorre em não-ficção, especialmente história, crítica e biografia, e mais uma vez as reedições chamam atenção, sobretudo em romances. Mas começo pela ficção atual. Neste ano tivemos Fantasma Sai de Cena e Indignation, de Philip Roth, For You, de Ian McEwan, e Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum. Li muitas outras coisas, como sempre bastante elogiadas na imprensa brasileira, mas nada que se comparasse com esses. O nível sobe quando incluímos ficções recentes que ainda não haviam sido traduzidas no Brasil, a começar pelo extraordinário Austerlitz, do austríaco W.G. Sebald, de quem também saiu Vertigem, seu primeiro livro. Putas Assassinas e Amuleto, do chileno Roberto Bolaño, também são magistrais, embora menos conhecidos que Noturno do Chile e Os Detetives Selvagens. As Nuvens, de Juan José Saer, último romance concluído pelo escritor argentino, não é como A Ocasião, mas é muito bom. Não há nada na ficção brasileira dos últimos 30 anos comparável com Roth, Sebald, Bolaño, McEwan ou mesmo Saer. As reedições, como disse, foram muitas. As obras de Machado de Assis (inclusive as completas, da Nova Aguilar, agora em quatro volumes), Nelson Rodrigues e Jorge Amado são exemplos, assim como as - bem menos comentadas - de Newton da Costa, pensador brasileiro (sim, existe), principalmente o Ensaio sobre os Fundamentos da Lógica. Traduções de clássicos como Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, Sou um Gato, de Natsume Soseki, e Concerto Barroco, de Alejo Carpentier, foram fundamentais. Efemérides, como sempre, justificaram muitas publicações. Os 400 anos do padre Vieira trouxeram o primeiro volume de suas Cartas, a reedição de sua biografia mais conhecida, por João Lúcio de Azevedo, e o "esboço biográfico" de Clóvis Bulcão. O centenário da imigração japonesa ganhou Os Japoneses, de Célia Sakurai, e História do Japão em Imagens, de Shigeo Nishimura. E sobre os 200 anos do Jardim Botânico do Rio se destacaram O Jardim de D. João, de Rosa Nepomuceno, e o belíssimo Árvores Notáveis, ilustrado por Malena Barretto e Paulo Ormindo. Reli agora, por sinal, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, livro que completa 70 anos e tem edição especial com fotos de Evandro Teixeira. Apesar da fama, ele vai além do registro de agruras agrestes e mostra que o que falta a Fabiano é a educação, a capacidade de articular idéias. Fotografia, por sinal, é um item crescente no cardápio das editoras brasileiras. Cristiano Mascaro, mestre das fotos urbanas em Desfeito e Refeito, Araquém Alcântara, de paisagens como as da Mata Atlântica, e J.R. Duran, anticlichê em seus Cadernos Etíopes, são meus preferidos do ano. O livro da Coleção Princesa Isabel é um banquete. A arquitetura também parece ganhar mais espaço em livrarias: meus destaques vão, sem dúvida, para o livro sobre a Fundação Iberê Camargo, de Álvaro Siza, e o de Isay Weinfeld, além de livros de referência como Arquitetura na Formação do Brasil, de Briane e Paulo Ricca, e Aleijadinho - O Teatro da Fé, de Monterroso Teixeira. O jornalismo também foi saboreado em O Grande Livro do Jornalismo, editado por Jon E. Lewis, O Livro das Vidas, com os obituários do New York Times, e Stasilândia, de Anne Funder, além das incursões no jornalismo literário de duas brasileiras, Vanessa Barbara e Eliane Brum. Li bons livros de história, como o de Marco Villa sobre 1932 e Mao?s Last Revolution, de Roderick MacFarquhar e Michael Shoenhals, que, ao lado de A China Sacode o Mundo, de James Kynge, me ajudou muito no mês que passei no país. Biografias como The Several Lives of Joseph Conrad, de John Stape, e a de Leila Diniz por Joaquim Ferreira dos Santos me atraíram. A melhor do ano é a que estou lendo no momento, Traitor to His Class, de H.W. Brands, sobre F.D. Roosevelt, que logo comentarei - assim como New Art City, de Jed Perl, traduzido no Brasil, sobre "Nova York, capital da arte moderna". Livros de crítica que elogiei incluem Paintings in Proust, de Eric Karpeles, Classics for Pleasure, de Michael Dirda, e sobretudo How Fiction Works, de James Wood, único que sei que já está sendo traduzido. Entre os ensaios brasileiros destaco Ser-tão Natureza, de Mônica Meyer, exceção no mal comemorado centenário de nascimento de Guimarães Rosa. A ciência e suas relações com a cultura, mais do que tudo, continuaram em alta. Assim como Meyer estuda a natureza na obra de Rosa, Jonah Lehrer diz que Proust Was a Neuroscientist e analisa outros criadores pelo ângulo da neurologia. Steven Pinker também se pergunta Do Que É Feito o Pensamento. A Criação, de Edward O. Wilson, e O Canto do Dodô, de David Quammen, tratam de nosso lugar na biodiversidade terrena, assim como The Richness of Life: The Essential Stephen Jay Gould. E The Oxford Book of Modern Science Writing, organizado por Richard Dawkins, é de fato antológico, e uma prova de que muitos dos maiores estilistas modernos estão nas ciências. Todos eles sabem que a tecnologia do folhear ainda não foi substituída e que o hábito da leitura é o melhor amigo do conhecimento. DE LA MUSIQUE O mundo da chamada música erudita vive ainda mais de reedições ou novas interpretações dos clássicos. Mas nesse quesito não podemos reclamar. Curti muito neste ano produtos como o DVD sobre a violoncelista Jacqueline Du Pré, as caixas dos maestros Karajan e Bernstein, a formidável voz de The Art of Christa Ludwig. Recentemente tenho me deliciado com o Chopin de Maurizio Pollini (Deutsche Grammophon), interpretação quintessencial de sua balada número 2, da sonata de mesmo número e de mazurkas e valsas, e me surpreendido com Mozart 13 Berg, CD com o Ensemble Intercontemporain conduzido por Boulez e protagonizado pela grande pianista Mitsuko Uchida. Inigualável, porém, é escutar Benjamin Britten ao piano e Rostropovich ao violoncelo tocando a sonata Arpeggione de Schubert, mais Schumann e Debussy, na gravação lendária de 1968 que a Decca vem de relançar. Que intensidade! Que integridade! Lamento ter perdido quase todos os bons concertos do ano, de tão ocupado que fiquei com Machado de Assis, Olimpíada e outras viagens e trabalhos. Lamento especialmente não ter visto O Castelo do Barba Azul com direção de Felipe Hirsch - e aguardo o DVD. Mas escutei atuações sensacionais de músicos da atualidade: Late Piano Sonatas, de Schubert, por Leif Ove Andsnes, que veio ao Brasil; As Quatro Estações, de Vivaldi, por Joshua Bell, que também já admirei ao vivo; as Partitas 2-4, de Bach, por Murray Perahia; e a Obra Integral para Piano e Violoncelo de Beethoven, por Menahem Pressler e Antonio Meneses, que também vi executar o Dom Quixote de Richard Strauss com o maestro Roberto Minczuk em Campos do Jordão. A era dos grandes intérpretes, ao contrário da dos grandes compositores, não acabou. Na música dita popular não é muito diferente. CDs como o de Omara Portuondo e Maria Bethânia, o de Diego el Cigala e o de Rosa Passos são ótimos exemplos. Tivemos ainda, entre as vozes, versões de Cartola, o CD Bonita de Marcia Lopes e a simpatia de Stacey Kent. Brad Mehldau, com seu trio, e Yamandu Costa, com Tokyo Session, salvaram o ano mais uma vez. No pop ouvi com prazer Cat Power, Beck, Carla Bruni e outros, mas gostei mesmo foi de Lay it Down, de Al Green. Gostei da canção Janta, do disco solo de Marcelo Camelo, com participação da adolescente Mallu Magalhães, "hype" do ano, exagerado como todo "hype". De jazz passo por onda nostálgica, exceto por Mehldau e poucos outros, e agora recebi a bem-vinda Jazz Collection (Sony BMG), com caixas de cinco CDs cada de músicos como Duke, Monk, Miles e Sonny Rollins. POR QUE NÃO ME UFANO De uma vez por todas, tento resumir mais uma vez: Dom Casmurro não se martiriza por ter dúvidas a respeito de ter sido traído por Capitu ou não. Mas, em seu egocentrismo romântico, por saber que não se conhece e, logo, não foi capaz de conhecer Capitu. O livro é muito mais que uma charada.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.