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Mark Twain em coletânea de 24 contos e ensaios

Textos extraídos da Biblioteca Bancroft, da Universidade de Berkeley, provam por que autor americano continua popular

Por Tim Rutten
Atualização:

Ao morrer, há 99 anos, o norte-americano Mark Twain (1835-1910) era o escritor mais amado do seu país. E sua posição como autor e exemplo multifacetado de celebridade da cultura popular não cessa de ser reconhecida a cada década que passa. Quem É Mark Twain?, coletânea de contos e ensaios que não foram incluídos em livros anteriores, extraídos em grande parte do imenso arquivo de documentos e da correspondência do autor pertencente à Biblioteca Bancroft, da Universidade de Berkeley, é um divertido lembrete de por que isto aconteceu. A morte de Twain, aos 74 anos, de doença cardíaca, representou um golpe tão profundo para o país que mereceu até mesmo a declaração de pesar oficial da Casa Branca feita pelo então presidente William Howard Taft: "Mark Twain proporcionou prazer, um verdadeiro gozo intelectual, a milhões e sua obra continuará a proporcionar este prazer aos milhões que virão... Seu humor era americano, mas ele foi igualmente apreciado em vários outros países." Ernest Hemingway afirmou, em sua frase famosa, que "toda a moderna literatura americana nasceu de um único livro de Mark Twain, Huckleberry Finn, embora até ele tenha reconhecido que o desastroso final do grande romance é ?puro engano?". (Na opinião deste crítico, pode-se fazer referência semelhante a respeito de Bartleby, o Escriturário e The Confidence-Man, ambos de Herman Melville. No entanto, que outro autor do século 19, tão controvertido em seu tempo - embora por motivos diferentes - , continua discutido em nossos dias?) William Faulkner, que não recebeu elogios tão fáceis de outros romancistas, definiu Twain como o "primeiro escritor verdadeiramente americano". O poeta Kenneth Rexroth, cujas agudas análises críticas são tão frequentemente menosprezadas (ver The Classics Revisited), escreveu que, "se Baudelaire foi o maior poeta da época capitalista... Mark Twain escreveu sua saga, suas Ilíada e Odisséia em prosa, em As Aventuras de Tom Sawyer e As Aventuras de Huckleberry Finn. Rexroth acrescentou ainda que Twain pode escrever tal saga porque "soube como sobreviver para escrevê-la". Para os fãs de Twain, estes 24 textos - na realidade, seis deles incompletos - são um maravilhoso exemplo desta busca pela sobrevivência. Embora o escritor não tivesse medo de expor - pelo menos aos que vieram depois dele - seu processo de formação, também tinha um profundo conhecimento do que seus leitores aceitariam ou não. Como Robert Hirst - editor do Projeto Mark Twain de Berkeley, que selecionou estes trabalhos - ressalta em sua clara introdução, Samuel Clemens (verdadeiro nome do ficcionista) gostava de testar seus textos antes de publicá-los com o pseudônimo famoso. Uma das histórias deste volume é The Undertaker Tale, cuja ideia era, nas palavras de Hirst, "jogar um típico herói de Horatio Alger numa família de agentes funerários" e deixar que as coisas seguissem seu curso. Como era seu costume, Twain lia o conto que acabara de escrever para uma plateia formada por sua mulher e filhos. Um biógrafo descreve o resultado: "Ninguém falava durante a leitura, ninguém ria. O ar estava denso de desaprovação. A sua voz falhava, ia se apagando perto do fim da história. Quando ele terminava, pairava um silêncio pesado. A sra. Clemens era a única que podia falar: ?Jovens, vamos andar um pouco.?" Na sequência, o autor testava o conto com seu amigo, o socialista utópico William Dean Howells, e depois o guardava para sempre. Como Hirst destaca, Twain pretendia guardar - mas não destruir - as obras que considerava inadequadas para serem publicadas na época, e o fazia não apenas por meros motivos estéticos, mas também por acreditar que seus leitores não aceitariam suas opiniões mais severas, particularmente quando diziam respeito à religião estabelecida ou ao teísmo. Embora fosse agnóstico, ele foi um dos primeiros observadores culturais americanos a intuir que o grande problema do país não era a religião em si, mas o excesso de religiosidade. Também tinha plena consciência de que bem poucos dos seus leitores estavam preparados para aceitar suas avançadas ideias políticas, particularmente notáveis pelo fato de ele ter nascido na fronteira dividida do Estado de Missouri, mal ter servido duas semanas como soldado confederado não regular e, mais tarde, ser um dos poucos americanos a não tomarem parte da Guerra Civil. Mudou-se para Connecticut e lá se casou. Sua mulher, Olivia, o apresentou a um grupo extraordinário de pensadores americanos radicais, como Howells e Frederick Douglass. Twain tornou-se um apaixonado defensor da igualdade racial, um dos primeiros paladinos do sufrágio feminino, um ferrenho anti-imperialista - mesmo durante a Guerra Hispano-Americana - e, o que é menos conhecido, um defensor da mão de obra organizada. Certa vez declarou a um público de Cavaleiros do Trabalho radicais: "Quem são os opressores? Poucos: o rei, o capitalista e um punhado de supervisores e superintendentes. E os oprimidos? Muitos: as nações do globo, personagens de valor, trabalhadores, aqueles que fazem o pão que os molengas e os inúteis comem." Como mostra o fluxo contínuo de material não publicado encontrado na volumosa coleção de papéis que deixou, Mark Twain sentia que a sua relação com o público, do qual o seu bem-estar financeiro dependia, poderia não sobreviver à divulgação dessas ideias. Ele tinha a sensação exata da linha que separava uma provocação bem-humorada da afronta direta, algo que prenuncia nossas noções sobre como deve comportar-se uma celebridade. Mas vale a pena ler Quem É Mark Twain? pelo enorme prazer de redescobrir porque esse escritor foi tão popular em sua época. Mesmo quando equivocado, ele é fascinante. Twain desprezou a escritora inglesa Jane Austen, por exemplo, e também o britânico George Elliot e o escocês Robert Louis Stevenson. "Quando peguei Orgulho e Preconceito ou Razão e Sensibilidade, senti-me como um barman entrando no reino dos céus. Quero dizer, sinto o que ele provavelmente teria sentido. Estou quase certo de que sei bem qual seria sua sensação - e seus comentários. Ele teria feito cara feia diante desses presbiterianos de imensa bondade, mostrando-se satisfeitos consigo mesmos. Por que ele se considerava melhor do que eles? Absolutamente. Ele não gostava deles - e é só." Jane Austen, disse certa vez Twain parece gastar a primeira metade de cada livro fazendo com que o leitor deteste os seus personagens e a segunda parte tentando convencê-lo a gostar deles. É o eterno iconoclasta falando.

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