Marília Pêra pode mais que Gloriosa

Texto sobre cantora desafinada não permite à atriz uma atuação crescente

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Por Redação
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Já se escreveu que, em qualquer circunstância, há o sorriso que guia e ilumina o que Marília Pêra faz. Sorriso vizinho de certa melancolia numa combinação que compõe um dos rostos mais expressivos do teatro brasileiro. As duas faces desse temperamento cênico intenso estão presentes em Gloriosa, espetáculo um pouco estranho para ser definido como musical. A peça refere-se ao caso de Florence Foster Jenkins (1868-1944), milionária norte-americana, mais perturbada psicologicamente do que figura das artes, que se autoproclamou cantora lírica e manteve carreira contra a opinião geral. É um caso, de certa maneira, trágico, que o autor inglês Peter Quilter resolveu lidar como comédia musical. Mulheres ricas e de temperamento forte ou excêntrico nunca faltaram. Uma das mais conhecidas, a escritora americana Gertrude Stein (1874-1946) vivia em Paris nos anos 20 e 30 cercada de futuros grandes pintores e escritores. Criticava uns, incentivava outros e até protegia financeiramente os mais carentes. Temperamento ciclotímico, deixou uma obra polêmica. Como pessoa, foi descrita cruelmente por Ernest Hemingway em um deslize de lealdade. O romancista foi deselegante, mas não mentiroso. Depois surgiu Peggy Guggenheim (1898-1979), outra americana, beneficiária de imensa fortuna e que, instalada no seu palácio Venier dei Leoni, em Veneza, dedicou-se a promover artistas como Man Ray, Brancusi e Marcel Duchamp. Colecionava quadros e namorados. No Brasil, houve Nair de Teffé, filha de barão e mulher do presidente da República Hermes da Fonseca. Apesar de o esposo ser um sisudo marechal, Nair foi a primeira mulher caricaturista da imprensa brasileira e enfrentou o preconceito da sociedade carioca da época ao introduzir o violão e, pior, o maxixe, ritmo de negros, nos saraus da Presidência. Um pouco mais tarde veio Eugênia Moreyra, que fumava charuto em público, envolvia-se com o teatro e defendeu comunistas perseguidos. Todas foram abusadas figuras progressistas, felizes à sua maneira, e - o principal - com talento. Já a personagem de Gloriosa, embora rica, foi uma provável vítima de distúrbios psíquicos decorrentes da agressiva medicação a que se submetia para combater a sífilis (é o que se sabe, embora a peça não mencione). Expunha-se pateticamente em público em apresentações quase circenses para divertimento de amigos duvidosos, como o compositor Cole Porter, que se fazia passar por seu admirador, e a indignação de puristas da ópera que a vaiavam. O fim dessa existência não foi bom, mas Peter Quilter achou graça. Aqui há um ponto de dúvida. O humor inglês é célebre pela ironia sarcástica, o toque de absurdo ou humor negro. Talvez o que Gloriosa pretendesse no original tenha se diluído na transposição (a peça fez um sucesso estrondoso na Inglaterra). Os produtores e diretores Charles Möeler e Cláudio Botelho optaram por uma linha caricata que torna a personagem uma figura de chanchada com direito a um arremate sentimental. Marília pode mais. Tem na sua ancestralidade artística a comédia, o luxo das plumas, o drama e o melodrama. Sabe tudo sobre um papel. Sabe o suficiente para, com outro tipo de enfoque de direção, demonstrar maior compaixão por essa rica e desamparada Florence Jenkins, que ninguém acudiu a tempo para que não fosse mortalmente humilhada. Como Marília traz igualmente consigo a seriedade, em algumas cenas sua expressão traduz desamparo ou insegurança. São os melhores momentos. O texto não permite uma atuação crescente quando a tira do centro do enredo, com interrupções anedóticas envolvendo uma empregada latina ou a musicista histérica (papéis bem resolvidos por Guida Vianna). Há mais coerência na parceria dela/Florence com o pianista que Eduardo Galvão desempenha com sinceridade e simpatia. Apesar do título, Marília Pêra carrega um espetáculo com menos esplendor do que ela já fez, tantas vezes, de forma gloriosa. Serviço Gloriosa. 105 min. 12 anos. Teatro Procópio Ferreira (670 lugs.). Rua Augusta, 2.823, tel. 3083-4475. 5.ª e sáb., 21 h; 6.ª, 21h30; dom., 18 h. R$ 70 (5.ª), R$ 80 (6.ª e dom.) e R$ 90 (sáb.). Até 2/8

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