Maria que ama Carlos Drummond...

Quadrilha foi um dos poemas musicados pela compositora Maria Schneider em concerto no fim de semana em Minnesota

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Por Lúcia Guimarães
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Quando a platéia descobriu que "Lili casou com J.Pinto Fernandes que não tinha entrado nesta história", as gargalhadas desmontaram a solenidade do concerto. Nem a diva no centro do palco, a soprano Dawn Upshaw, escondeu sua satisfação com o efeito. O poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, desembarcou em Minnesota já musicado e em boa companhia. Com Quadrilha viajaram Os Mortos de Sobrecasaca, Lembrança do Mundo Antigo e Não se Mate. Os poemas não foram reunidos para aula de literatura, mas se agruparam na imaginação da maestrina, compositora e ganhadora de dois Grammys, Maria Schneider. A première mundial, no fim de semana, foi no majestoso Ordway Theater, residência de uma das melhores orquestras de câmera em atividade, a Saint Paul Chamber Orchestra. Era uma estréia em mais de um sentido. Quinze anos depois de pegar a estrada com sua própria orquestra de jazz, Maria Schneider recebeu o convite de Dawn Upshaw para molhar os pés nas águas eruditas. Nunca havia escrito para cordas ou voz. Ela já foi apontada como uma herdeira da tradição de Duke Ellington, seguidora do impressionismo musical de um de seus mentores, Gil Evans, de quem foi assistente. Dawn Upshaw está numa direção artística rotativa da orquestra e me diz que, ao se deparar com a partitura da nova peça enviada por Maria Schneider, teve suas expectativas mais do que superadas: "É impressionante o instinto dela para escrever música num idioma novo." Upshaw é uma grande incentivadora de nova música e para quem duvida de seu faro eclético, tenho duas palavras: Osvaldo Golijov. O argentino, hoje um dos maiores nomes da composição, e autor das trilhas sonoras dos dois últimos filmes de Francis Ford Coppola, escreve há vários anos para a voz sublime de Upshaw. A crítica foi exaltada, nos jornais das cidades gêmeas, Minneapolis e Saint Paul, ambas à beira do rio Mississippi e conhecidas pela rica progamação musical. William Beard, do Star Tribune, maior jornal da região, elogiou a escolha dos poemas de Drummond, "ricos em imagem e emoção mas econômicos o bastante para ser enriquecidos pela música". As referências à música brasileira, como o choro, não escaparam ao crítico. O jornal diz que, em novo território, Schneider se mostrou uma narradora eloqüente e também muito bem sucedida ao reger uma orquestra de câmara pela primeira vez. O Star elogiou e declamação "perfeita" dos poemas na voz de Dawn Upshaw. A resenha de Rob Hubbard, no Saint Paul Pioneer Press, com a expressão "Leitura deliciosa" no título, considerou a noite um retorno triunfal de Maria Schneider, que cresceu na região rural de Minnesota. Aqui, um esclarecimento para não ser acusada de auto-nepotismo editorial. A viagem de Drummond à fria planície do meio-oeste americano começou com um telefonema para minha casa em dezembro passado. Maria Schneider, personagem de um documentário que dirigi para o GNT em 2000, estava excitada e em pânico com o desafio da nova composição. "Preciso de palavras", disse ela. Não me lembro por que comecei a recitar Drummond. Talvez pelo caso de amor que ela tem com o Brasil, achei que a economia lírica, o contraponto de melancolia com humor do poeta e a textura harmônica da musicista poderiam começar um namoro. Mesmo ouvindo os poemas em tradução improvisada ao telefone, Schneider desligou encantada. Procurou traduções para o inglês e, para minha surpresa, não escolheu as de Elizabeth Bishop e, sim, as de Mark Strand, o Poeta Laureado Americano, ganhador do Pulitzer. Strand deu aula de literatura no Brasil em 1965, voltou só uma vez, na década de 70 e hoje já não sustenta uma conversa em português. Aos 74 anos, ele dá aulas de creative writing na Universidade de Columbia, viaja para receber prêmios em vários países e publicou, no fim do ano passado, uma nova coletânea, New Selected Poems, que é um primor de economia e ajuda a entender por que ele é o tradutor mais lisonjeiro para o nosso Drummond. Certa vez fui visitar o poeta português Vasco Graça Moura em sua quinta, perto de Lisboa. Graça Moura é aclamado tradutor de Dante e Goethe. Perguntei como um poeta tão rigoroso podia se satisfazer com a tradução de poemas. Ele sorriu e me explicou: "É simples, você faz amor com a língua para a qual está traduzindo e, se necessário, comete adultério contra a língua original." Se chifrou Drummond, Mark Strand o fez com maestria. Não pude evitar observar de soslaio o alto homem curvado que se sentou à minha esquerda, na première de Histórias de Carlos Drummond de Andrade. Ao ouvir os versos de Drummond em inglês, a expressão do lacônico Mark Strand sugeria uma viagem emocional intensa. No intervalo, perguntei por que ele não tinha ido conhecer Drummond quando jovem, no Rio. Afinal era amigo da poeta Elizabeth Bishop, que, na época, morava na cidade. "Bishop me desencorajou", Strand lembra. "Ela disse, eu sou tímida, você é tímido e Drummond também é. Como seria o encontro?" Diante das duas grandes musicistas que se abraçaram e se curvaram para a única ovação de pé da noite, vejo que duas obras poéticas se reencontraram, afinal.

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