Marco zero literário do surrealismo é publicado

Nadja, escrito pelo poeta André Breton em 1928, ganha nova edição de luxo

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Ausente do mercado brasileiro há mais de 30 anos, Nadja (1928), de André Breton, primeiro e mais importante texto ficcional do surrealismo, volta às livrarias graças à iniciativa da editora Cosac Naify, que encomendou a seu tradutor, o poeta Ivo Barroso, uma revisão de sua versão de três décadas atrás para a editora Guanabara. É uma edição primorosa, 21º volume da coleção Prosa do Mundo, iniciada com a publicação de O Diabo e Outras Histórias, de Tolstoi, e que resgatou do esquecimento obras-primas da literatura, entre elas Niels Lyhne, de Jacobsen, O Companheiro de Viagem, de Krúdy, e, mais recentemente, O Exército de Cavalaria, de Bábel, três títulos essenciais. Nadja é fundamental por vários motivos: além de preciosa introdução ao universo dos surrealistas, foi o anti-romance que abriu novos caminhos para a literatura, acentuando sua desconfiança no romance realista e anunciando a fragmentação do homem contemporâneo, repleto de dúvidas sobre sua identidade e dividido em infinitos corpos. A vida, como dizia Breton, autor do Manifesto Surrealista de 1924, além de não ser previsível, é diferente do que se escreve. Portanto, não faria sentido ter em Nadja um narrador onisciente e íntegro. Breton convida o leitor a duvidar até mesmo de seu relato a partir da primeira frase do livro, ''''Quem sou?'''', admitindo desempenhar em vida o papel de um fantasma, que pode ser um desdobramento da própria Nadja, mulher enigmática e pobremente vestida que ele cruza no dia 4 de outubro de 1926 na Rue Lafayette, após deter-se alguns minutos diante da vitrine da livraria do L''''Humanité e comprar um livro de Trotski. Como observa Eliane Robert Moraes na introdução da nova edição, Nadja é a ''''pitonisa moderna por excelência'''', uma esfinge cosmopolita diferente daquele que desafiou Édipo a decifrar o enigma da condição humana. Nadja não vai apontar um, mas vários caminhos para Breton nesses dez dias passados em 1926, quando o surrealista erra pela cidade em busca do bas-fond do espírito, que ele encontra, por exemplo, no Théâtre de Deux-Masques, transformado num cabaré animado da rue Fontaine. Ao encontrar a misteriosa pitonisa, Breton ouve de Nadja uma explicação para sua desleixada aparência: ela alega estar indo a um cabeleireiro do Boulevard Magenta. Breton duvida, mas fica tão encantado por seus olhos que esquece até das queixas de Nadja sobre sua situação financeira, levando-a à varanda de um café perto da Gare du Nord. A identificação é imediata. Assim começa uma relação de pouco mais de uma semana, contada em detalhes por esse Ulisses errante que se perde nas passagens e bulevares de Paris como o filósofo Walter Benjamin, autor de um monumento literário sobre as transformações da cidade nos anos 1920, Passagens. Interessante notar que Benjamin começa a tomar notas para Passagens (obra inacabada que vai de 1927 a 1940) na mesma época, esboçando uma história da modernidade a partir de figuras como o flâneur, a prostituta e outros tipos marginais, entre eles jogadores que tomam de assalto as galerias da capital francesa. Nadja é um produto híbrido, misto de diário com ensaio memorialista, libelo político, fotos que funcionam como escritura e desenhos que tomam o lugar de diagnóstico psicanalítico. Breton tenta recuperar as impressões de sua odisséia urbana com Nadja e desesperadamente registrar na memória a figura da musa errática, que lhe escapa como uma alucinação. Em tempo: ela existiu, de fato. Chamava-se Léona Camille Ghislaiene e foi internada num manicômio. A proposta de Breton de integrar os enigmáticos desenhos de Nadja à narrativa revela bem mais que um lance de ousadia surrealista. Assim como o universo urbano representa para ele a imagem da vida, que muda, evolui, como fachadas de cinema que ganham novos cartazes a cada filme, todos os desenhos de Nadja são reveladores da relação que se estabelece entre eles. Num desenho de 18 de novembro de 1926, Nadja faz um retrato simbólico dela e do poeta, uma sereia que encanta a figura monstruosa com cabeça de águia e corpo de gato que sai de um vaso. Num outro desenho, o gato tenta fugir sem perceber que está preso ao chão. Freudianamente, Breton tenta uma interpretação psicológica dessas figuras míticas sem grande sucesso, mas deixa o leitor curioso para seguir adiante na investigação. Assim, a iconografia de Nadja concede sentido a algumas passagens obscuras. As fotos restituem o ambiente real e transportam o leitor para um passagem surreal, além de revelar os amigos do autor por Man Ray (fotos de Éluard, Péret e Desnos). Os desenhos definem não só o mito pessoal de Nadja, repleto de figuras fantásticas, como constituem um retrato psicológico da musa, funcionando como elo intermediário entre as fotos e as obras de arte reproduzidas nas páginas de Nadja, vertiginosos manifestos do primeiro surrealismo. Além de uma função cognitiva e estética, essas imagens propõem uma nova abordagem filosófica. Não só da escritura, mas, principalmente, da vida.

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