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Mais pequenos milagres, agora pela Cia. do Feijão

Há tantas histórias, temas e subtemas, em Pálido Colosso, que até seria possível arquitetar, com essas mesmas oportunas propostas, meia dúzia de outras obras

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Por Redação
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Há temas e subtemas interessantíssimos em Pálido Colosso, o mais recente espetáculo da Companhia do Feijão. São tantos e tão oportunos os assuntos que talvez seja possível arquitetar com as mesmas propostas uma meia dúzia de obras diferentes. Estão em cena, sob a forma de pequenos episódios tratados de modo irônico ou francamente grotesco, movimentos sociais e os lances políticos conseqüentes desde as primeiras décadas do século 20. Recontados através da visão retrospectiva de personagens contemporâneas ou, mais raramente, de textos ficcionais de outros autores, os fatos históricos têm, contudo, estilo informativo e claro, indicando o propósito elucidativo característico da poética desse conjunto paulistano. Desde 1999, o grupo vem apresentando encenações cuja ótica contempla de modo especial a cultura e a contingência da população pobre do país. Desse modo, as formas narrativas forjadas para esse objetivo consideram a possibilidade de dialogar também com o público que inspira a representação, considerando-o interlocutor qualificado para apreciar formalizações sofisticadas e provocações intelectuais abstratas. Nenhum espetáculo do grupo até hoje pecou por fazer concessões didáticas. Esta última criação, contudo, alterna dois níveis de linguagem e, por essa razão, parece contemplar virtualmente dois ou mais tipos de público. Para quem não teve a oportunidade de testemunhar a história ou de aprender em uma escola razoável, as situações e personagens são recontadas de modo simplificado, quase como se fossem endereçadas a uma platéia muito jovem. Considerada em relação aos espetáculos anteriores, essa novidade é um retrocesso. Ao mesmo tempo um movimento paralelo apresenta o indivíduo ''''moendo'''' a história, reinterpretando-a no momento em que ocorre, adaptando o fato ao interesse e à capacidade de compreensão do sujeito que a rememora. De um modo geral, a versão subjetivada contraria a nitidez do documento e interpreta-o sob a luz dos interesses de um grupo ou de uma pessoa. As vigorosas mobilizações sindicais que precederam a régua e o compasso da legislação trabalhista são um bom exemplo do procedimento do espetáculo porque são representadas pelo avesso, por fura-greves e oportunistas mimetizados de modo farsesco. Nem sempre os dois planos se harmonizam do ponto de vista estilístico. Talvez por contemplar uma vasta extensão temporal e um numeroso repertório de temas, que vão da tortura sob o regime militar até os dilemas morais da militância de esquerda, o espetáculo muda rapidamente de tom, como se fosse um show de variedades. E esse é, por enquanto, um gênero novo que o grupo propõe a si mesmo e que ainda não está bem resolvido neste trabalho. O formato leve e aparentemente aleatório dos antigos espetáculos de variedades, apresentados em cabarés ou em casas de diversões, se estrutura sobre artimanhas da recepção que dosam muito bem o lírico, a pitada de drama, o erotismo, o jogo e a farsa. As cenas se intercalam ou se repetem de acordo com a observação prolongada e cristalizada do comportamento do público e grandes artistas que se apropriaram do gênero (em especial os dramaturgos expressionistas) aproveitaram essas úteis convenções. Em Pálido Colosso, no entanto, os diferentes tratamentos obedecem a conexões um tanto misteriosas. De um modo geral, temos a impressão de que o processo de criação ofereceu uma quantidade tão grande de cenas e propostas que foi preciso cortar e pular logo para o outro em obediência a uma ambição cronológica. Foi-se o tempo (e que no passado permaneça) em que a crítica cobrava dos artistas mais estudo e seriedade na invenção da sua poética. Grupos estáveis em todo o país se agregam em torno de projetos de pesquisas que contribuem para alargar todos os campos do conhecimento, e não só o território da arte. A Companhia do Feijão é um desses grupos com um campo vazio na coluna do haver e não há dúvida de que este último trabalho espelha uma vocação genuína para a investigação dos dilemas contemporâneos. A longa citação de uma obra de Oduvaldo Vianna Filho neste espetáculo parece, contudo, o sintoma de uma aspiração nostálgica pela síntese ou, talvez, pela decantação que traz à tona uma ou duas coisas e deixa no fundo um logo fértil para criações futuras.

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