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Maia e a luta pelo teatro essencial

Um perfil do dramaturgo que ajudou a criar o coletivo Folias e morreu no dia 17

Por Marco Antonio Rodrigues
Atualização:

No dia 17, uma sexta-feira pela manhã, Reinaldo Maia, companheiro e irmão do teatro que interessa, fez brusca e trágica saída de cena aos 57 anos e nos deixou aqui órfãos de sua escrita, não do seu pensamento. O Maia era dramaturgo, encenador, ator, baterista, escritor, pai extremoso da bela Júlia, marido de todas as horas da valente Giselda. Empregou seus tantos talentos na construção do Folias, o coletivo teatral que se formou em 1997, a partir da montagem de Folias Fellinianas, de sua autoria. De lá brigou incansavelmente por um teatro tão essencial à vida como o arroz e o feijão. Foi um dos idealizadores e fundadores do Movimento Arte Contra Barbárie, que no fim do século passado revirou de ponta cabeça a cena brasileira a partir de São Paulo. O tempo já prova o Arte Contra Barbárie como um dos movimentos políticos mais importantes a surgir nos últimos tempos. Provavelmente o Maia diria que a extrapolação desta significância deve-se muito mais à mesmice política que paralisa o País nos últimos anos do que aos méritos de formulação de uma estética pública do Movimento. Ele tinha essa percepção e essa sensibilidade do concreto: alma sensível, doía-lhe muito romper com um companheiro por conta de desavença política. Só que a dor não impedia o ato. Acompanhei-o na construção do Redemoinho, quatro anos atrás, movimento nacional de teatro de grupos fundado a partir de iniciativa do Galpão, de Minas. Foi um dos seus maiores estimuladores a ponto de fazer parte do conselho nacional do movimento. Com pesar, um ano atrás rompeu violentamente. Para ele já se anunciava ali o triste fim do Redemoinho, liquidado agora em março. Seu poder de avaliar conjunturas e traçar estratégias de luta ou arriscar prognósticos, era decorrente, em minha opinião, primeiro de sua sólida formação marxista e, segundo, do estudo detalhado da obra e pensamento de gente como Bertolt Brecht, por exemplo. Formação e estudo, instrumentalizando e confirmando sua capacidade de fabulação poética. Maia não conseguia separar pensamento e ação, não tinha esse talento esquizofrênico de aceitar os atos injustos, as mediocridades e perversidades várias, como elementos da contemporaneidade. Quanto mais estudava, produzia e compreendia o mundo, mais radical e intransigente ficava. Conseguia invejavelmente como ninguém, juntar à intenção, o gesto; à teoria, a prática; o pensamento ao discurso. Ultimamente, dirigia um espetáculo com texto de sua autoria, concluía um romance, preparava a edição de suas obras encenadas, colaborava na formulação de um Fundo Público Federal de Cultura, como alternativa democrática à Lei Rouanet, cuja manutenção considerava absurda demais. Funcionário público federal na Funarte, nunca escondeu sua opinião, fazendo-a sempre pública e clara, o que sempre lhe valeu muitas dores de cabeça. Aliás, num desses muitos episódios, o Maia acabara de ser convidado para prestar uma assessoria de artes cênicas ao Memorial da América Latina. O convite era honroso: foi feito por um colega, intelectual muito conhecido que havia sido seu superior no Ministério da Cultura onde ele servira à época de Celso Furtado. Curiosamente, por aqueles dias saíra na grande imprensa um comentário crítico do Maia a algum ato do titular da pasta da Cultura, que provavelmente entendia o Memorial como quintal da própria casa. O homem ofendeu-se e imediatamente o antigo colega e emérito intelectual fez o serviço sujo: desconvidou-o. O que é que eu poderia falar sobre sua genialidade e talento nas muitas parcerias que tivemos, eu como encenador, ele como dramaturgo? Aquela firmeza pública era de uma docilidade extremada e generosa no trabalho. Fosse em Babilônia, Verás que Tudo É Mentira, Orestéia, no trabalho de dramaturgista junto ao Otelo, em sua deslumbrante interpretação de Pio Miranda em El Dia Que Me Quieras e, recentemente, na adaptação de Cardenio, que estrearemos em breve, tinha sempre a capacidade de ouvir, mudar, aceitar sugestões, sem problemas de autoria, do mesmo jeito que tinha a coragem de apontar claramente os problemas indicando soluções, já que um compromisso que sempre tivemos no Folias é a busca obsessiva da excelência. Briguei com o Maia uma vez na vida. Nós nos conhecemos brigando, 25 anos atrás. Acho que ali nos admiramos. Desde então, divergimos inúmeras vezes, mas nunca sequer pensamos em nos separar. Nunca tivemos uma amizade promíscua: pouco freqüentei a sua casa e ele muito menos a minha. Por isso, falo dele com doçura e sinceridade. Ele está morto e eu pela metade. Queria que ele tivesse a capacidade de ver quanta gente despedindo-se naquela triste noite de seu velório lá no Galpão do Folias, sede do grupo que fundou com outos companheiros. Queria que soubesse como é amado. Não com amor babaca, cretino e cristão, mas com amor de quem respeita a estatura do interlocutor. Por que tenho sérias dúvidas de que o Maia, como muitos de nós da mesma geração que lutamos pela democracia e constatamos a triste capitulação a esta ditadura econômico-midiática, não se perguntasse de forma desesperada, se valeu ou vale a pena. Todas aquelas pessoas lá, Maia, choravam sinceramente o artista, que nunca separou forma e conteúdo e que até no momento final, estourando publicamente seu nobre coração nos constrangeu a continuar fazendo. Mesmo que sem esperança. Marco Antonio Rodrigues, diretor do Grupo Folias

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