Lothar Charoux é homenageado com mostra em SP

Retrospectiva reúne obras inéditas do pintor concreto

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Mario Pedrosa (1900-1981) observou que a arte do concreto Lothar Charoux (1912-1987) era “de um rigor que se disfarça”. Nela, a precisão, segundo o crítico, “tende a ser controlada pela imprecisão, como o positivo é dominado pelo negativo”. A observação de Pedrosa é especialmente válida para o visitante da retrospectiva Razão e Sensibilidade, aberta na última quarta-feira no Museu Belas Artes de São Paulo com curadoria da historiadora e crítica Maria Alice Milliet. De fato, a arte de Charoux recusou o quinto mandamento estabelecido pelo homem que cunhou o termo arte concreta, Theo van Doesburg (1883-1931), o de que a técnica de uma pintura concreta deve ser mecânica, anti-impressionista. Pedrosa, em 1962, já notara que Charoux, embora não fosse movido pela dúvida do rumo artístico que tomou, violentou o rigor dos concretos em seus trabalhos, usando de forma lírica a refração da luz.

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Charoux buscou a pureza formal e a harmonia perseguidos pelos holandeses Van Doesburg e Mondrian, mas Pedrosa, autor de uma tese fundamental que associa arte e Gestalt - sua maior contribuição para a movimento concreto -, intuiu que o pintor era um caso único entre os artistas do Grupo Ruptura.

Em 1952, um ano depois da primeira edição da Bienal de São Paulo, os artistas do Ruptura (Charoux, Luiz Sacilotto, Waldemar Cordeiro e outros) lançaram um manifesto que definia a arte como “um meio de conhecimento deduzível de conceitos”. Faltou dizer que esses conceitos por vezes são contraditórios - e Charoux assumiu a contradição de fazer nascer figuras geométricas da refração da luz e do ritmo dinâmico de linhas, unindo instabilidade impressionista ao ilusionismo da op art.

O artista escapou do controle concreto para abraçar uma tridimensionalidade virtual bem antes da arte feita por computadores (observe, por exemplo, os quadrados que surgem nas duas serigrafias reproduzidas acima, à direita, ambas produzidas em 1974). Como a maioria dos trabalhos expostos, essas serigrafias pertencem à coleção da família de Charoux e nunca foram exibidas em público, garante a curadora Maria Alice Milliet, que enfrentou o desafio de pedir a um conhecido banco uma série inteira (acrílica sobre papel colado em madeira, de 1976). É um exemplo de “obra aberta”, conforme o termo criado por Umberto Eco, segundo Milliet. “Partindo de elementos estruturais móveis, ele rompe com a configuração fixa e permite um número expressivo de combinações aleatórias pelo fruidor”, observa a curadora.

Pela raridade das peças, o visitante não poderá manipular as obras expostas, mas vale observar que, a exemplo dos “bichos” articuláveis de Lygia Clark, Charoux produziu trabalhos com os quais o espectador pode interagir, caso dos triângulos componíveis da década de 1970 que estão na exposição. Antes, ele produziu a série dos “tortinhos” (1967), alguns deles também na retrospectiva.

Entortando os quadros, ele provocava um desequilíbrio que seria desfeito por uma ou várias linhas horizontais ou verticais. Isso perturbava demais os observadores, lembra a curadora Maria Alice Millet. “As pessoas mexiam nos quadros para endireitar, pensando se tratar de um descuido do artista”, conta. Incomodou particularmente um pintor holandês (provavelmente o premiado Jan Schoonhoven) na 9.ª Bienal de São Paulo (1967), a ponto de Charoux, preocupado, se dirigir ao embaixador da Holanda, disposto a provar que se tratava de uma convergência de pesquisa, não de plágio.

O pensamento plástico de Charoux, aliás, dialoga com o de grandes nomes da arte cinética, dos quais os mais evidentes são os venezuelanos Carlos Cruz-Díez e Jesús Rafael Soto (1923-2005), além do argentino Julio Le Parc, embora a ideia de metamorfose na obra de Soto não seja a mesma que guia o trabalho do brasileiro. Em ambos está implícito que o movimento comanda a estrutura, mas Charoux, segundo a curadora, “aceita a ambiguidade da forma sobre o plano e usa isso a seu favor”. Em outras palavras: Soto precisou do tridimensional para penetrar num outro plano; Charoux, apenas da sugestão dessa terceira dimensão.

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Outra diferença: Cruz-Díez e Soto tiveram melhor sorte financeira. Sob proteção da galerista francesa Denise René (1913-2012), que promoveu a arte cinética no mundo, eles fizeram carreira internacional e tiveram suas obras transformadas em grandes painéis, ganhando dinheiro com arte pública. Charoux, que desembarcou no Brasil em 1928, aos 16 anos, vindo de Viena, foi garçom, caixa de uma casa de jogos na fronteira com o Paraguai, administrador de um hotel falido em Mato Grosso, até se fixar no Alto da Lapa, trabalhando por 36 anos como funcionário da fábrica de fios Gutermann. 

Nas férias, viajava com sua mulher. “Segundo dona Ondina, ele gostava de sair, ir a exposições, beber com os amigos e voltar de madrugada no último bonde”, revela a curadora, que define o artista como um homem generoso, dedicado e extrovertido. Algumas obras da exposição revelam esse lado: ele mesmo desenhava os cartões de Natal para o amigos (cedidos em comodato ao Instituto de Arte Contemporânea pela família) e empregava o tira-linhas com a paciência de quem produzia uma arte para ficar. Como ficou. RAZÃO E SENSIBILIDADEMuseu Brasileiro de Belas Artes. R. Dr. Álvaro Alvim, 76, 3255-2009. 2ª a 6ª, 10 h/18 h; sáb., 10 h/16 h. Grátis. Até 6/12.

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