Lobato, o visionário

Relançamento de Urupês, Cidades Mortas e O Presidente Negro, bem como dos títulos destinados ao público infanto-juvenil, proporciona reavaliação da sua obra

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Por Walnice Nogueira Galvão
Atualização:

A reputação de Monteiro Lobato correu o risco de ir para o limbo com o regionalismo, mas é bom lembrar que ele extravasa de muito a contribuição, aliás enorme, que deu à vertente. Vários trabalhos ultimamente surgidos ampliam nossas perspectivas e servem para assinalar que, com obra tão abrangente e militância pessoal tão invulgar, seria injusto enquadrá-lo apenas nesse molde. Merecem atenção o pioneirismo no campo editorial e as iniciativas como militante de muitas causas, inclusive a do petróleo (em que ninguém acreditava). Mas as crianças que leram O Poço do Visconde sabem que o combustível provém de matéria orgânica fóssil, aprenderam o que é um anticlinal e se familiarizaram com as técnicas de perfurar poços para extraí-lo. E sobretudo nunca duvidaram, dadas as explicações sobre a configuração geológica que predispõe às jazidas, que essa é uma das riquezas do Brasil. Não é pequena a contribuição. Sem resistir à sua índole de tribuno e propagandista, Lobato empenhou-se em várias outras campanhas: a do ferro, por exemplo. Mas também a da preservação do meio ambiente, de modo precoce; e a da preocupação com a saúde pública - de que a figura do jeca-tatu é apenas uma pequena parte. Também se ocupou de reivindicar liberdade para a criação lingüística e o primado da imaginação. No campo editorial, Lobato lutou pela independência e pela modernização do setor, enfrentando obstáculos quase intransponíveis. Entre outras iniciativas, fundou a Companhia Editora Nacional, que foi modelar, e comprou a Revista do Brasil, acolhendo em suas páginas o que de melhor havia no ensaísmo local. No caso dos livros infantis, Lobato não foi apenas o mais alto criador de imaginário já surgido entre nós, mas ainda traduziu alguns estrangeiros célebres, adaptando-os livremente. Todos subsistem, alegrando a criançada. Várias gerações se beneficiaram de suas versões dos clássicos, belamente ilustradas, em seus esforços para tornar a leitura atraente para os mirins. Um rol mesmo sucinto evidencia seu excelente critério. Ali figuram Alice no País das Maravilhas, A Ilha do Tesouro, O Livro da Jângal e Kim, os contos de Andersen e os de Perrault, Robinson Crusoe, D. Quixote para Crianças, Peter Pan, Pinóquio, Fábulas. E várias adaptações da mitologia grega, como O Minotauro e Os Doze Trabalhos de Hércules. Algumas usam o recurso habilíssimo de inserir as crianças do sítio nas histórias alheias, como esses dois últimos. Em clave mais juvenil, integram o rol O Lobo do Mar, de Jack London, e, sem esquecer as senhoritas, Pollyana e Pollyana Moça. As metas didáticas de Lobato revelam-se nos compêndios em que a turma do sítio estuda matemática, gramática, geografia, história das invenções, e outros ramos do saber. As meninas tinham privilégios em sua obra, própria ou traduzida: tão afoita quanto os moleques, Narizinho não se esquivava a nenhuma travessura. Sobre aquela utopia sem homens, que é o sítio do Pica-Pau Amarelo, reinam duas soberanas - Dona Benta e Tia Nastácia. E seu maior protagonista é uma boneca, no feminino: Emília, tirana inteligentíssima e de uma curiosidade a toda prova. Quanto à sua contribuição à ficção do regionalismo, estes três volumes que saem agora - Urupês (1918), Cidades Mortas (1919) e Negrinha (1920) -, em bem cuidada edição da Globo, evidenciam o esquema naturalista dos contos. Os cenários são dados pelas cidadezinhas do Vale do Paraíba, que entraram em decadência depois que o café se foi. Ficam para trás os campos esgotados entregues ao sapé e aos cupins, o jeca-tatu minado de doenças e de desesperança, os lugarejos de que os homens válidos se evadiram, os poucos figurões locais como o dono de terras, o padre, o poetastro, o pequeno funcionário, o farmacêutico, a viúva. O vitríolo de sua pena fustiga esses personagens sem cessar. Em meio a tantas narrativas sombrias, a tantas ''mortes trágicas'', como ele mesmo as definiu, brilham jóias de humor, entre as quais O Comprador de Fazendas e O Colocador de Pronomes. Urupês foi um extraordinário êxito, sucedendo-se as tiragens, que se esgotaram rapidamente. Fiel ao regionalismo, filiou-se entre aqueles cônscios de que um país de dimensões continentais como o Brasil não poderia ter apenas uma literatura, metropolitana e hegemônica. Desde os tempos coloniais se elevaram vozes a clamar pelo direito de expressão literária que deveria caber aos diferentes rincões do País. Tarefa de várias gerações, às letras de metrópole passariam a corresponder as letras das províncias. No bojo dessas manifestações, elaborou-se a pesquisa da oralidade. Aos poucos, entre os escritores da Amazônia como entre os gaúchos, foram surgindo discursos novos, que escapavam ao português castiço e expressavam os falares das diferentes partes do País. Lobato seria o mestre do regionalismo caipira, que teve como precursores Valdomiro Silveira e Cornélio Pires. Esses contos são contemporâneos do tratado de filologia de Amadeu Amaral, O Dialeto Caipira. Sua aversão ao modernismo, que veio à tona no famigerado ''episódio Anita Malfatti'', não desmerece a estatura do abridor de caminhos (N.R.: Em 1917, Monteiro Lobato publicou no Estado o artigo Paranóia ou Mistificação?, extremamente desfavorável à pintora). Apesar das narrativas naturalistas, a prosa em que se expressa é tendencialmente modernizante, tanto quanto a atividade empresarial e a amplitude de seus horizontes como reformador. A certa altura, Lobato abalançou-se a escrever um romance de ficção científica, O Presidente Negro (1926), na linhagem de Jules Verne e de H.G. Wells, então em grande voga com A Guerra dos Mundos; não falta o idealismo humanitário de George Bernard Shaw, aludido por um nome ligeiramente disfarçado. Original e brasileiro, distingue-se desses criadores de universos paralelos na preocupação com os embates entre as raças, que elege como tema. Sente-se à vontade por causa da experiência pessoal para tomar por pano de fundo os Estados Unidos e não o Brasil, comparando as soluções que os dois países encontraram para a convivência interétnica, mostrando quanto são insatisfatórias. A leitura do romance ganha outra dimensão hoje. Pois, em meio a intensas discussões paracientíficas e filosóficas, sobre eugenia, por exemplo, o que sobressai é o fato de que as eleições presidenciais americanas no século 23 serão disputadas por um branco, um negro e uma mulher. Parece mentira, não é? À emancipação feminina é dado um grande espaço no livro, se é que não se torna o tema predominante, depois do étnico. Às vezes para ridicularizar, às vezes com enfática aprovação. É bem uma obra de visionário, importante componente de sua personalidade multifacetada, que já se divisava tanto na literatura para crianças quanto em suas campanhas. No entrecho, os brancos inventam um processo de despigmentar os negros e alisar seu cabelo. Só que, embutido no processo, vai um fundo de fantasia de extermínio a que Lobato não se pôde furtar. E aqui mais não adiantamos para não trair sua estratégia. Em tempo: quem ganhou a eleição no ano de 2228 foi o presidente negro. Walnice Nogueira Galvão é professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, autora, entre outros, de As Musas sob Assédio e A Donzela Guerreira

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