Liz, metáfora sobre arte e opressão

A nova e audaciosa montagem do grupo, marcada pela energia e inquietação, navega entre circo, paródia e certa provocação

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Por Crítica Jefferson Del Rios
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Em uma foto de 1976, Fidel Castro, imponente aos 50 anos, segura nos braços o filho de Pierre Trudeau, então primeiro-ministro do Canadá, país que não aderiu ao embargo a Cuba imposto pelos EUA. Hoje sabemos como ele está depois de mais de 40 anos de poder. A rainha Elizabeth I da Inglaterra (1533-1603) governou por exatos 45 anos. Fidel derrubou o governo corrupto e violento de Fulgêncio Batista, Elizabeth abriu o país para o comércio internacional e o transformou em uma potência (a Bolsa de Londres opera desde 1506). Em linhas gerais, pode-se dizer que ambos se aproximam na obstinação quase mística pelo poder ao se verem como garantidores da existência nacional. O reverso desta imagem portentosa é o exercício da violência e a solidão. Nesse fio de história e espada transita a peça Liz, do cubano Reinaldo Montero, encenada por Rodolfo Garcia Vázquez com Os Satyros. Assista à entrevista com Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vázquez sobre os 20 anos dos Satyros É mais uma das audaciosas criações do grupo que completa 20 anos com energia e inquietação, qualidades maiores que os possíveis enganos cometidos. O teatro poder errar porque mobilidade e risco são da sua natureza; o palco não mata ninguém. Já trono e as revoluções (sobretudo quando envelhecem) oprimem e matam por certezas salvacionistas e a presunção de serem insubstituíveis. Elizabeth teve grandezas e crueldades. Foi a soberana de uma ilha como Cuba, e Montero sublinha essa similaridade no enredo que trata da proximidade do artista com o poder. O texto prolixo acumula fatos históricos em sequência acelerada que não se apreende de imediato (as relações entre Inglaterra e Espanha no século 16, as sangrentas questões político-religiosas entre os católicos e protestantes dos dois países e entre a Inglaterra e a Escócia governada por Mary Stuart, prima de Elizabeth). Entre beneficiários e vítimas desses embates estão Walter Raleigh, o predileto da rainha, mistura de empreendedor e oportunista, e o dramaturgo Christopher Marlowe, que integrou a rede de espionagem real sendo morto de forma nebulosa. Há várias possibilidades de aproximação desses fatos à história mais recente. No Brasil, estranhou-se a amizade do poeta Manuel Bandeira com o general Castelo Branco e de Nelson Rodrigues com o general Médici. Em Cuba, há casos parecidos e opostos, como o do romancista Miguel Barnet, benquisto pelo regime, e o doloroso exílio de Guillermo Cabrera Infante, que morreu na Londres de Elizabeth, longe da sua terra, que é o cerne de sua grande obra. Fidel não pôde ou não quis ter um gesto de concórdia em relação ao ex-companheiro, o autor de Três Tristes Tigres, Havana para um Infante Defunto e Mea Cuba. O mesmo sedutor Fidel da foto com uma criança. É perigoso ao artista se deixar levar por tais seduções (Marlowe), como é conveniente aos ávidos de poder (Raleigh). É por aí que vai a alegoria de Liz com cenas de impacto, outras vagas. O espetáculo navega entre o circo, a paródia e certa provocação. Pela primeira vez, salvo engano, cenários e figurinos atrapalham Os Satyros. A saturação de cores e panos sob uma iluminação precária dá a impressão de mau acabamento. Não chega a ser patchwork inglês nem tem as magníficas cores e formas barrocas do pintor cubano René Portocarrero. Se deixados de lado os envelhecidos gestos sexuais "transgressivos", a representação é vibrante. Cléo de Páris (Elizabeth) tem beleza e ímpeto. Cresce nos momentos de alta tensão enquanto deixa escapar a nuance nos momentos coloquiais Ela ainda precisa domar os momentos de voz incolor. Mas Cléo é um temperamento dramaticamente forte, aqui em parceria com a presença cênica irônica e audaciosa de Germano Pereira (Raleigh). Ivam Cabral, ator símbolo do grupo, desta vez cede espaço aos colegas, mas sempre se impõe. Há elegância e força em Brigita Menegatti (Mary Stuart), simpatia na versatilidade de Fabio Penna. Enfim, elenco nunca foi problema para Os Satyros, agora em uma produção exterior à sua sede na Praça Roosevelt, o que é um passo adiante na sua aventura de duas décadas. Se nada é muito claro em Liz, isso pode ser, não por acaso, o reflexo da Inglaterra de antes e da Cuba de agora.

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