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Livros livres

Sinopse

Por Daniel Piza
Atualização:

A história da liberdade e a da leitura estão entrelaçadas, embora haja políticos escritores que pareçam não saber disso. Os livros continuam aí, como um setor vigoroso e crescente, apesar dos maus presságios. E uma livraria oferece opção de centenas ou milhares de títulos, ao passo que os cinemas e teatros não passam de dezenas, para não falar das exposições. Nas últimas semanas, tenho lido alguns livros muito interessantes, porque antes de mais nada são livres: o modo como manifestam seu compromisso com o que já foi dito é acrescentar novidades ou ao menos ângulos novos. Livre-se: O Andar do Bêbado, de Leonard Mlodinow (Zahar, 262 págs., trad. Diego Alfaro) - Mlodinow é coautor de Stephen Hawking e tem um belo livro sobre Richard Feynman, mas neste livro não trata especialmente de física. Seu assunto são as estatísticas, ou melhor, a maneira como as pessoas tratam as probabilidades, sempre temendo o aleatório, o casual. Ele descreve as descobertas de grandes matemáticos (Bernouilli, Bayes, Pascal, Faraday, etc.) alternando com situações cotidianas. Nestas, em alguns momentos, é um tanto superficial, como quando diz que um treinador não precisa repreender o atleta que cai de rendimento porque a tendência é voltar ao padrão, como se encaixar uma boa frase de crítica ou estímulo não fosse muitas vezes determinante. Na maioria, porém, vai direto ao ponto, como ao comentar a defesa de O.J. Simpson pelo famoso advogado Alan Dershowitz. Este observou ao júri que uma fração inexpressiva das mulheres espancadas por companheiros nos EUA era assassinada por eles. Mlodinow nota que mais relevante seria ver qual a probabilidade de uma mulher que foi espancada e assassinada tenha sido morta pelo espancador. No Brasil, onde as estatísticas são tão mal lidas, dos cadernos de esporte aos órgãos do governo, o livro calha muito. Acima de tudo, porque mostra que a intuição não é um atalho para a decisão correta, como tanta gente diz; o raciocínio consistente tem suas exigências. Ver a força do acaso em nossa existência é o oposto de pensar "deixa a vida me levar". The Age of Wonder, de Richard Holmes (Pantheon Books, 552 págs.) - Uma idéia muito bem sacada e executada. Holmes, que é biógrafo de Coleridge e Shelley, entre outros, mostra a relação complexa do romantismo com a ciência. Numa frase célebre, John Keats disse que Newton teria destruído a poesia do arco-íris ao reduzi-lo a um prisma. Holmes mostra que a frase não é tão anticientífica - nem Keats era - porque tem uma pitada de ironia, no sentido de que o arco-íris não é apenas um truque de laboratório. Mas é exemplo de como essa nova beleza, a de descobertas sobre luz, eletricidade, história natural ou química, mexia com o espírito da época, ora causando fascínio com a revelação de fenômenos, ora desgosto com a queda de dogmas. Ele destaca três personagens da Londres do começo dos 1800 para, entrelaçadamente, captar esse espírito: Joseph Banks, botânico da expedição de James Cook, que abriu a era dos naturalistas viajantes (como Humboldt e Darwin, ou o nosso Euclides da Cunha); William Herschel, astrônomo ateu obcecado com a lua e com a poesia de John Milton; e Humphry Davy, químico especialista em gases que inspirou a Goethe a afirmação - ora, ora - de que o conhecimento é muitas vezes contraintuitivo. Holmes descreve a moda do balonismo, a concepção de Frankenstein por Mary Shelley, os versos de Byron em louvor a Newton; apesar dos sonhos de "totalidade" dos românticos, também a ciência era romântica. E diz que isolar ciência, filosofia e arte é bobagem. O Imitador de Vozes, de Thomas Bernhard (Companhia das Letras, 160 págs., trad. Sergio Telarolli) - Este é o livro de minicontos do escritor austríaco, autor de obras-primas como Extinção, O Náufrago, O Sobrinho de Wittgenstein e mais uma dúzia de livros que, 20 anos depois de sua morte, ainda não foram traduzidos no Brasil. Bernhard é conhecido por seu raivoso antipatriotismo, mas sua crítica à combinação do nacional-socialismo com o catolicismo é seminal. Mais importante: ele cria gente e clima com uma agudeza rara, num estilo que mistura a ficção e o ensaio sem se tornar professoral ou pós-moderno; nos põe na pele dos personagens ao mesmo tempo que mantém a sensação de estranheza, uma arte para pouquíssimos. Seus temas estão todos nessas histórias compactas, de ascendência kafkiana, como o exílio, o suicídio (como o do emigrado que é recriminado por não ter pensado na família), a música, o artifício (como nos comediantes que tentam escrever papéis para si mesmos e acabam escrevendo sobre si mesmos), o poder, a loucura (como a do carteiro internado por não entregar cartas com más notícias, que no manicômio se ocupa de distribuir todas as cartas aos outros internados). Críticos locais podem achar que é fácil escrever essas histórias que brincam com os lugares-comuns, como quando analisam um livro de aforismos apenas por exemplos isolados. Não caia nessa, leitor. Lidas em conjunto, elas mostram uma visão peculiar com uma voz inimitável. Titian Tintoretto Veronese, de Frederick Ilchman e outros (MFA Publications, 316 págs.) Se você é fascinado pelo Renascimento Veneziano, como Bernhard (que escreveu sobre Ticiano em Old Masters) ou Proust, não perca. É um belo livro de arte que, mais do que o catálogo da exposição em Boston (a qual chega ao Louvre em setembro), tem ótimos textos sobre como a rivalidade entre esses mestres intensificou seus talentos. A figuração de Ticiano, o cromatismo de Tintoretto e a composição de Veronese se influenciam mutuamente e se transformam com o tempo. Em cenas muito parecidas, da Bíblia, da mitologia ou nos retratos de poderosos, vemos também as grandes diferenças. E então, em alguns casos, como em Tarquínio e Lucrécia, vemos Tintoretto batendo Ticiano em seus domínios, especialmente na sensualidade dos tecidos. A Rainha Albermarle ou O Último Turista, de Jean-Paul Sartre (Globo, 188 págs., trad. Júlio Castañon Guimarães) - Outro aficionado pela pintura veneziana foi Sartre, que escreveu longamente sobre a cor amarela em Tintoretto (como Proust sobre a de Vermeer). Neste livro, inacabado como tantos outros de seus projetos megalomaníacos, fala sobre a Itália, especialmente sobre a cidade que "anda em uma poça de tempo muito antiga". Por mais que generalizações bem à francesa sejam cansativas, como a de que Veneza é o que é porque "não pode esconder o lixo", o que vale são as pequenas observações, os registros no diário como um sobre a naturalidade no caminhar que vê em algumas italianas entrando num restaurante. Ou quando fala sobre o turismo como uma expressão de ressentimento, de não saber ver. Estilo Tardio, de Edward W. Said (Companhia das Letras, 192 págs., trad. Samuel Titan Jr.) - Eu já tinha comentado aqui o livro também inacabado de Said, quando publicado em inglês. Como Sartre, Said me agrada mais escrevendo sobre estética do que martelando na sociologia (como a de que Jane Austen só escreveu o que escreveu porque havia uma escrava trabalhando por ela em alguma colônia inglesa). Foi sempre um intelectual antiacadêmico, inimigo do especialista, e neste livro nota como o crítico e filósofo Adorno analisa o "estilo tardio" de Beethoven (dos quartetos e da missa) projetando a si mesmo, Adorno, naquele suposto descaso com a comunicação com o público - o que vale mais para Adorno do que para Beethoven. Said também analisa o caráter exilado e anacrônico das fases finais de Strauss, Lampedusa e outros. Atlas - "Ainda hoje o Atlas é minha leitura preferida", escreveu Bernhard em Origem, reunião de suas memórias. Também não esqueço as horas que passava folheando atlas na infância e por isso vibrei ao ganhar no Dia dos Pais o Visual Atlas of the World da National Geographic, muito bom especialmente nas referências de patrimônios culturais. No Brasil, saiu o segundo volume do IBGE do Atlas das Representações Literárias das Regiões Brasileiras, que trata dos sertões de Rosa, Bernardo Élis, Suassuna e outros autores menos famosos. Um dia ainda alguém há de fazer o Atlas Literário do Brasil. Para encerrar, não um atlas, mas um guia visual muito bem-feito e bem-vindo: Avifauna Brasileira, de Tomas Sigrist (Avisbrasilis Editora, em dois volumes - mais caderneta de campo para os cada vez mais numerosos "birdwatchers"). Quem acha que ler é se fechar ao mundo exterior está perdendo a brincadeira. POR QUE NÃO ME UFANO A pergunta que não quer calar: por que nenhum instituto fez (até quinta) pesquisa de opinião para saber quantos são favoráveis ao afastamento de Sarney e quantos não? O tema não tem relevância suficiente? *E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br Blog: http://blog.estadao.com.br/blog/Piza

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