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Livro mostra como a Kodak criou o turista-fotógrafo

Obra da pesquisadora Lívia Aquino analisa um século da história da empresa, da virada do século 19 aos anos 1970

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Fotografia e turismo são indissociáveis, mas uma empresa teve papel fundamental no incremento da foto amadora, a ponto de virar tema da tese de doutorado da pesquisadora e professora Lívia Aquino, agora disponível em livro publicado pelo Ministério da Cultura e Funarte, Picture Ahead: a Kodak e a Construção do Turista-Fotógrafo. Trabalho vencedor do prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia de 2015, o livro analisa anúncios, cartazes, publicações e outdoors feitos pela empresa desde a virada do século 19 até 1970, mostrando como a Kodak agiu para formar o personagem do “caçador’ de imagens que, no entender da ensaísta norte-americana Susan Sontag (1933-2004), se assemelha a um predador.

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Lívia Aquino não concorda inteiramente com ela. Lembra que Sontag escreveu isso nos anos 1970 – e que é preciso, portanto, contextualizar esse ensaio. “Havia ali o reconhecimento de uma fotografia aliada a práticas predatórias, de um fotógrafo que sai em busca de imagens pelo mundo e volta sem conhecer aquele local visitado, a cultura e as pessoas”. Contudo, reconhece a ensaísta brasileira, ela reitera parcialmente as observações de Sontag sobre tal procedimento, ao revelar práticas da Kodak em que se alinham caça e fotografia.

Seu livro, aliás, mostra como a afinidade entre fotografia e a caça acabou aproximando, em 1881, George Eastman, o fundador da Kodak e inventor do filme em rolo, de um fabricante de armas, William Walker, para pesquisar o funcionamento de peças e produtos químicos usados nos filmes, a ponto de Eastman criar o slogan “Você puxa o gatilho, nós fazemos o resto”, que deveria seduzir fotógrafos amadores avessos a câmeras sofisticadas. Eastman, conta a autora, adorava um safári no continente africano, dedicando-seàs excursões para fotografar, acampar e caçar,logo após deixar a presidência da Kodak, em 1925.

Desde 1839, quando surgiu, a fotografia “encontra-se vinculada aos deslocamentos e ao desejo de exploração do mundo”, observa a ensaísta Lívia Aquino, concluindo que fotografia e turismo são “experiências da modernidade”. A autora observa que, dos anos 1980 em diante, fotógrafos como o inglês Martin Parr invertem a equação e passam a “mostrar o turista como objeto” – e ela se refere particularmente à série The Last Resort, em que Parr se mostra implacável com os frequentadores dos balneários de New Brighton, registrando o mundo real da classe operária inglesa em duplicata, como se fosse um membro da família com olhar crítico – enfim, um sarcástico turista-fotógrafo.

Outros fotógrafos, como o catalão Joan Fontcuberta – que emula, de modo irônico, o estilo da National Geographic – ou a suíça Corinne Violet – que coleta fotos de turistas em sites de compartilhamento – são analisados na tese de Lívia Aquino, mas o foco do livro é mesmo a figura do turista-fotógrafo que caça imagens, justificando seu título, Picture Ahead (Foto Adiante), slogan usado em 1920 pela Kodak numa campanha publicitária. A empresa espalhou 6 mil placas pelos EUA para chamar a atenção dos fotógrafos, então sujeitos passivos que, segundo outro slogan, não precisavam fazer nada além de apertar o botão da câmera. “Desde o início, a Kodak engendra práticas que levam o sujeito a certa passividade, mesmo que no discurso dos anúncios e das estratégias fosse dado ao cliente uma suposta escolha”, reflete a autora do livro.

Por outro lado, a empresa investiu pesado na formação do público, não só por meio da publicidade, mas principalmente pela publicação de livros, manuais e revistas especializadas, entre as décadas de 1870 e 1890, edições que traziam em seus títulos a palavra “amador”. Esse amador não tardou a virar predador, como observou Susan Sontag e o filósofo checo Vilém Flusser (1920-1991), colaborador do Suplemento Literário do Estadão.

Flusser comparou o gesto do fotógrafo ao movimento do caçador paleolítico que persegue a caça, como lembra no livro a ensaísta Lívia Aquino. Ao promover a popularização da fotografia, a Kodak também ajudou a disseminar falsas duplicatas do mundo registradas por turistas fotógrafos. A propósito desse mundo-imagem falso, a autora menciona os dois soldados que voltam do exterior com cartões postais em Tempos de Guerra (1963), filme de Godard em que a dupla de personagens associa imagens de monumentos das cidades por onde passaram a conquistas militares – Flusser, mais uma vez, estava certo.

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Contraponto à figura do fotógrafo como caçador, a figura da Kodak Girl criada por George Eastman e Lewis B. Jones evidencia a mudança de rumo publicitário da empresa, sensível à evolução da sociedade – a “Garota Kodak”, nos anos 1920, era independente, feminista e andava desacompanhada. “Mas ela não era tão livre assim”, observa a autora. “A publicidade nos coloca diante de uma armadilha”, conclui. A armadilha, claro, é a campanha publicitária que a mostra como um ser que circula por todos os lugares. Com sua Kodak a tiracolo, evidentemente.

A Kodak Girl, criada para traduzir o visual da mulher independente e livre, sempre com a câmera a tiracolo Foto:
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