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Livro inédito de Cortázar é baú raso

Papeles Inesperados, lançado lá fora, reúne textos dispersos e irregulares

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Um quarto de século após a morte do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984), chega hoje às livrarias espanholas o baú de seus ossos literários, Papeles Inesperados (Alfaguara, 490 págs., R$ 71, já disponível na Livraria Letraviva, em São Paulo), livro inédito com quase 500 páginas e ainda sem previsão de lançamento no Brasil, que, em compensação, recebe esta semana outro livro seu, o infantil O Discurso do Urso (tradução de Leo Cunha, selo Galerinha, Record, 28 págs., R$ 29). Papeles Inesperados (Papéis Inesperados) reúne desde textos que o autor de Bestiário queria queimar - como um patriótico discurso sobre o Dia da Independência, proferido no dia 9 de julho de 1938, quando Cortázar era um estudante de 24 anos -, até um capítulo inédito da novela Livro de Manuel, passando por um texto sobre o capítulo suprimido de O Jogo da Amarelinha, quatro autoentrevistas, novos episódios de Lucas (o alter ego do autor), crônicas de viagem, perfis de personalidades e poemas. Até porque O Jogo da Amarelinha (Rayuela, 1963) é seu livro mais conhecido, o leitor fanático certamente irá direto à página 171 para conhecer a razão de Cortázar ter suprimido o capítulo 126. Ele deveria ter sido o ponto de partida da novela - ou da vontade de construir uma novela. Cortázar explica a razão num texto assinado há 30 anos. Conta que, ao fazer a revisão de O Jogo da Amarelinha (na 13ª edição brasileira, publicada no ano passado pela Civilização Brasileira), notou que o último capítulo - a descrição da noite de Horácio no manicômio - era quase uma repetição desse capítulo inaugural e reiterativo, que nada acrescentava à história do intelectual Oliveira, de Talita e Traveler. Para quem não leu, a obra é um jogo em que Cortázar, subvertendo a narrativa convencional, propõe ao leitor três diferentes maneiras de abordar o livro, que pode começar tanto no capítulo 73 como obedecer a uma ordem linear. Foi justamente o êxito de O Jogo da Amarelinha, em 1963, que fez o nome de Cortázar engrossar a lista dos intelectuais convertidos ao socialismo e convidados a participar como jurados do prêmio Casa de las Américas. Um dos entusiastas da então jovem revolução cubana de Fidel, hoje cinquentona, Cortázar passou a crítico (light) do regime quando o poeta dissidente Heberto Padilla (de Las Rosas Audaces, morto há nove anos ) foi preso por condenar a censura castrista. Cortázar fala de Cuba num texto de 1976, cinco anos depois do chamado "Padilla Affair", ou seja, da prisão do poeta dissidente, mas resiste à tentação de criticar Fidel, lembrando que sua ideologia é de "praxis cubana, de ritmo, sangue e cores locais". Os textos políticos - tanto o de Cuba quanto a crítica à ditadura de Pinochet no Chile (Chile: Otra Versión del Infierno, escrito em 1975)- deveriam ter ficado mesmo perdidos nos gavetões emperrados da cômoda parisiense onde foram encontrados esses inéditos. Não acrescentam muito à história do escritor - e, no caso do último, o próprio Cortázar reconhece sua fragilidade como ensaísta, ao começar o texto com a frase: "Vale la pena escribir esto?" ( Vale a Pena Escrever Isto?). A história dos gavetões emperrados é até mais interessante. Na antevéspera do Natal de 2006, o estudioso da sua obra, Carles Álvarez Garriga, foi convidado pela viúva e herdeira universal de Cortázar, Aurora Bernárdez, a analisar alguns papéis guardados numa cômoda de seu apartamento em Paris, aberta com certa dificuldade de tão abarrotada . Álvarez colocou os papéis sobre a mesa em que Cortázar escreveu O Jogo da Amarelinha. Como é possível que esse material tenha permanecido 25 anos sem ser ordenado, classificado, inventariado e microfilmado, pergunta o especialista, que aconselha os pesquisadores a serem mais cuidadosos daqui em diante. Esses textos póstumos, editados, reconhece Álvarez, fazem lembrar o episódio Kafka/Brod, ou seja, do amigo Max Brod, que traiu a vontade de Kafka e não queimou seus originais. Não que a poesia de Cortázar devesse virar cinzas, mas é pouco provável que o escritor argentino passasse à história como um novo Rilke depois de um poema como Blues for Maggie, declaração de amor etílico, em forma de carta, a uma amante distante - francamente piegas. Ou uma declaração de morte à mosca que o perturba desde Casablanca até Lima. Melhor ficar com seus contos mais antigos (como Los Gatos). Esses já anunciam o grande ficcionista que Cortázar foi. Para crianças O Discurso do Urso, conto que integra um dos mais conhecidos livros de Cortázar, Histórias de Cronópios e de Famas, é um exemplo do fervor surrealista de um escritor que não temia escolas nem estilos, deixando-se influenciar por todos. Esse conto infantil, agora lançado pelo selo Galerinha, da Record, com ilustrações do espanhol Emilio Urberuaga, fala de um urso que vive nas tubulações das casas, observando pessoas solitárias - tanto "cronópios" como "famas". Para quem chegou agora, cronópios seriam seres mais sensíveis colocados à margem do mundo, poetas que se contrapõem à ordem criada por pessoas sérias a quem Cortázar batizou de "famas". Trata-se, logo se vê, de uma fábula muito apropriada aos burocratas do mundo. NÃO PERCA O CAPÍTULO INÉDITO DE LIVRO DE MANUEL AUTODEFESA: Da montanha de textos que constitui sua obra, Cortázar decidiu suprimir, segundo o organizador de Papeles Inesperados, discursos juvenis ou textos reiterativos - talvez porque se tratavam de projetos ou pertenciam a um gênero não inventado pelo criador de Histórias de Cronópios e de Famas, como a autoentrevista, criação do narcisista Truman Capote. Numa "autoentrevistra", Cortázar defende-se das futuras críticas ao humor de Último Round, dizendo que, se Che Guevara fosse um homem sério, teria terminado seus dias num consultório médico em Buenos Aires. É certo que, como crítico, Cortázar foi cauteloso ao guardar no baú crônicas de viagem que hoje parecem incômodas, como a de Cuba (Nuevo Itinerário Cubano), em que diz não imperar lá a falocracia ou a rígida diferenciação sexual de outros países latinos. Bom mesmo é ler o capítulo inédito de Livro de Manuel, em que Cortázar se põe a falar das bonecas desenhadas por Bellmer e dos filmes de Fritz Lang, enquanto descreve uma cena de amor com Francine. Esse é o verdadeiro Cortázar que conhecemos.

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