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Linguagem revela memória oculta

Milton Hatoum aproveita o passar do tempo para recriar as cidades que conheceu, como Barcelona

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Por Ubiratan Brasil
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A primeira visita a um bordel inspirou Varandas da Eva, um dos 14 contos de A Cidade Ilhada. Já a passagem de Euclides da Cunha pela Amazônia resultou em Uma Carta de Bancroft. E a vida de exilados ganhou espaço em Bárbara no Inverno e Encontros na Península. A memória tornou-se a viga mestra da literatura de Milton Hatoum, que se destaca como um dos maiores escritores contemporâneos justamente por transformar lembranças, próprias ou alheias, em um poderoso compêndio de histórias humanas. Quando seu primeiro romance foi publicado, Relato de Um Certo Oriente, em 1989, a crítica do Sul/Sudeste surpreendeu-se: do distante Amazonas surgia uma voz bela e devastadora. Hatoum, sem ser regionalista, já utilizava a literatura como a busca de sentido em um mundo que não faz sentido. Vieram outros romances (Dois Irmãos e Cinzas do Norte), além de uma novela (Órfãos do Eldorado) até ele chegar aos contos com o texto ainda impressionando pela verticalidade e a delicadeza na composição do enredo e dos personagens. O próximo passo será uma seleção de crônicas, como conta na seguinte entrevista. Qual a aproximação que você tem com os contos? Fui na contramão da carreira da maioria dos escritores, que começam publicando contos. Escrevi alguns, nos anos 1970, mas ainda bem que não publiquei porque eram imprestáveis. Depois percebi que tinha assunto e escrevi Relato de Um Certo Oriente, meu primeiro romance. O conto é mais denso: brevidade e atenção andam juntos. Em A Cidade Ilhada, reuni contos selecionados. Tinha oito já publicados, alguns até no Caderno 2. O primeiro é de 1989, na época em que escrevia Relato, e se chamava Reflexão Sobre Uma Viagem Sem Fim. Depois, o título mudou para Viagem Sem Fim e, neste livro, virou A Natureza Ri da Cultura. Aliás, sempre modifiquei algo a cada nova versão - descobria que podia abreviar e adensar ao mesmo tempo. Há também seis inéditos em livro, alguns inspirados por amigos. Jorge Bodanzky, por exemplo, queria filmar algo a partir do meu trabalho e me contou uma história incrível, que resultou em Dançarinos na Última Noite. E o Luiz Fernando Carvalho também queria roteirizar um conto, o que me inspirou O Adeus do Comandante. Enfim, os textos surgiram à medida que eu encontrava o assunto. Ou melhor, quando os assuntos me encontravam. Você vê alguma ligação dos contos com seus romances? Sim, eles dialogam e alguns personagens aparecem em um e outro. É como se os personagens transitassem não apenas no tempo mas também por outros gêneros literários. Nunca um personagem é totalmente acabado - ele deixa vestígios de algo que não foi totalmente explorado de sua vida nos romances e que inspira outras narrativas. Ranulfo, por exemplo, personagem de Cinzas do Norte e que está no conto Dois Tempos - somente ele poderia estar apaixonado pela pianista, como aparece na história. Aliás, não posso negar uma queda particular por ele. Você poderia comentar sobre a estrutura dos contos? É curioso acompanhar duas histórias em paralelo até que, no final, o significado oculto de uma delas se sobressaia. É exatamente isso. Há a narração de uma história e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de uma segunda trama. A surpresa não está propriamente em uma revelação final, mas no desenvolvimento dessa segunda história e como ela desponta como algo secreto. É um recurso deliberado e está, por exemplo, em Um Oriental na Vastidão, que inicialmente parece tratar da visita de um japonês apaixonado pelo Rio Negro mas, na verdade, o que se sobressai é a morte dele. É como se o leitor fosse atraído para uma narrativa que não é a essencial do conto. Chekhov dizia que um conto precisa ser relido para então se suprimir o começo, o fim e deixar o miolo. É preciso manter a tensão e a atenção. O escritor precisa retesar o tempo todo os personagens, as situações e conflitos. E, por ser o conto mais curto que o romance, essa construção em paralelo exige que os passos dos personagens sejam milimetricamente acompanhados, não? Sim, lembra um pouco um poema do Borges, O Jogo de Xadrez, em que os jogadores movem lentamente as peças. É um jogo que tem de ser construído com muito cuidado, frase a frase. Por isso que Machado de Assis é um gênio - ele escreveu muitos contos, nem todos com a mesma qualidade, mas há pelo menos mais de 30 que são obras-primas. Ele é o grande mestre do conto em língua portuguesa e não deixa nada a dever a Maupassant, Chekhov, Poe. Até mais que no romance. Quando Machado escreveu os primeiros contos, o gênero ainda estava nascendo na Europa. O romance dele já seguia uma longa tradição europeia. Ele sabia tudo. Um dos contos, aliás, Encontros na Península, foi escrito em homenagem a Machado e lido por você na abertura de um simpósio mundial sobre o escritor, em 2008, no Masp. Sim, fui convidado a fazer uma saudação ao Machado, e em vez de fazer algo solene, escrevi um conto machadiano, com referências diretas a ele. Na verdade, trata-se de uma indagação sobre a qual conto de Machado o meu está se referindo. É um conto dentro de um conto. É um dos textos mais autobiográficos, pois retrata uma das minhas experiências de expatriado. Muitos detalhes do conto têm direta relação com minha vida em Barcelona. O conto trata, basicamente, de um embate sobre quem praticou melhor literatura, Machado de Assis ou Eça de Queirós. Isso realmente aconteceu? Aconteceu. Era o principal questionamento da minha aluna em Barcelona. Mas o mais difícil foi tentar escrever um conto machadiano a partir dessa experiência. Faço uma brincadeira com o leitor, deixando a charada: onde encontrar aquele louco nas páginas de Machado? Muitas pessoas me perguntaram qual era o conto e eu recomendei que lessem todos até descobrir. Foi intimidante escrever ao estilo machadiano? Quando se trata de uma quase paródia, de uma homenagem, acho que se pode ser machadiano. Como o Machado é um escritor com linguagem clássica, movida pela ironia e erudição, é até saudável tentar imitá-lo. Impossível é ser rosiano ou lispectoriano, pois o leitor reconhece logo que é um pastiche deliberado ou uma imitação que não faz sentido. Rosa e Clarice são autores de uma escrita muito marcada. No conto O Adeus do Comandante, por exemplo, percebe-se minha inspiração em narrativas do Guimarães Rosa: um mundo totalmente fechado, o absurdo que acontece na aldeia, o ambiente um tanto mágico. Mas, veja bem, a linguagem não se arrisca a copiar o Rosa. Seria impossível. Você deixou contos de fora? Sim, especialmente aqueles mais próximos da crônica, porque pretendo publicar um livro apenas de crônicas. Uma seleção do que já publiquei no Estado, na revista Entrelivros. Deixei também de fora alguns contos que terminei mas não terminei, na verdade - estão à espera. São narrativas muito diferentes das que estão no livro. Você costuma dizer que não tem tendência para o memorialismo, mas na sua obra a memória surge sempre como exercício de ficção. Na verdade, o que ela oculta é revelado na linguagem. Borges dizia que o esquecimento é uma das formas da memória. Assim, para falar de Barcelona hoje, há uma distância temporal que me dá liberdade para inventar. Tudo se relaciona com minha experiência ou com a dos outros - aquele conto Um Oriental na Vastidão se impôs como um enorme desafio para mim. A história me foi contada por uma grande amiga já morta, Maria Lucia Medeiros, que confessava não ter condições de transformá-la em escrita. Achei a história tão forte, densa, que decidi escrever o conto em memória da minha amiga. O Rio Negro é grandioso em sua beleza, seus mistérios. Navega-se durante dias e só se vê a natureza. Os contos, portanto, reúnem experiências de sonho, outras empíricas, algumas ainda narradas por amigos. Esse livro parece mesmo ser de um viajante, pois as histórias se passam em diversas cidades. Mas parece que o local onde você está no momento da escrita não é ainda tão importante. Enfim, quando você vai escrever uma história ambientada em São Paulo? São Paulo é o lugar onde me sinto mais à vontade para escrever - talvez por isso eu abstraia o espaço da ficção, porque é uma cidade com muita vibração e problemas. Eu não gostaria de escrever à beira de um lago suíço ou nos Alpes, eu me sentiria entediado. Gosto de escrever onde há tensão, barulho. Os contos anunciam uma alternativa da minha ficção, que vai sair momentaneamente de Manaus - já penso em uma história que não se passa lá. Estou buscando o fôlego, pois gostaria de reinventar minha vida em São Paulo. Adianto também que há, em narrativas futuras, um pouco da cidade. São Paulo vai entrar, aos poucos, em minha ficção. Manaus não vai perder seu posto, certo? Claro, até porque, como estou envelhecendo fora de Manaus, a cidade vai se transformando em uma fotografia do passado. Tenho voltado muito lá, e o que me interessa mais é uma visão contemporânea e dilacerante da cidade. Manaus é uma metrópole com tantos problemas que já inspirou um daqueles contos guardados, que vou reescrever. Seria um diálogo entre a Manaus da minha juventude e a cidade dos anos 1990, que conheci em visitas. É uma das cidades mais camaleônicas do Brasil. Lá, tudo é rapidamente destruído - certo dia, descobri que um dos últimos igarapés, o qual eu conhecia desde a infância, tinha sido aterrado. É chocante essa violência urbana, a destruição de uma memória. Bárbara no Inverno é um dos contos mais políticos do livro e que pode antecipar algo de São Paulo. Foi escrito pensando nesse trânsito entre Rio e Paris, pois tenho amigos que viveram isso. Também Brasília inspirou outro conto ainda inédito em português, Rasgo, que foi escrito a pedido dos responsáveis pela Human Rights Watch (ONG americana que faz pesquisa e advoga no campo dos direitos humanos), que vai publicar um livro para arrecadar fundos com contos referentes às cláusulas dos direitos humanos. E esse conto se passa totalmente em Brasília, durante a época em que morei lá, no final dos anos 1960. O mundo narrativo começa a se abrir quando esse passado mais distante começa a se esgotar. O conto é um movimento duplo em que algo não revelado logo desponta. Outra estratégia do conto moderno. A sua Manaus se transforma, cada vez mais, em uma cidade ilhada, não? Sim, a tal cidade ilhada é Manaus - e também somos nós. INSPIRAÇÃO: "Estou me afastando de Manaus. Busco fôlego para reinventar minha vida em São Paulo." {TEXT} ESCRITA DE UM CONTO: "É como um jogo que tem de ser construído com extremo cuidado, frase por frase." INFLUÊNCIA: "É saudável imitar Machado. Não se pode ser rosiano ou clariciano. O leitor percebe o pastiche." Trecho Eu conhecia alguma coisa do Eça, mas nada de Machado, prosseguiu Victoria. Antes da sobremesa, Soares me disse que Machado só escrevia sobre adúlteros e loucos, era um imitador vulgar de Laurence Sterne, Shakespeare, Almeida Garrett e alguns franceses. Faltava-lhe a visão crítica da sociedade, do país, uma visão que Eça esbanjava. Além disso, o tom filosofante, voltairiano, dava a Machado um ar pretensioso, puro complexo de colonizado. Teve a pretensão de ser um iluminista dos trópicos. Pretensão fracassada, claro. E ainda inventou narradores que parecem rir de tudo: do leitor, de si próprios, de Deus e até do diabo. Um brasileiro pedante, um cultor de galhofas, disse Soares a Victoria. Victoria encheu as duas taças e continuou. Fiquei impressionada com o tom de voz de Soares. Cheguei a pensar que Machado não era apenas um autor, mas também um inimigo. Defunto, mesmo assim, inimigo. Pois bem, o namoro começou naquela tarde. Não vou contar detalhes.

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