Lições de Beethoven em Ruanda

Lançamentos atualizam compositores na busca por diálogo com plateias

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Por João Marcos Coelho
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O maestro venezuelano Gustavo Adolfo Dudamel Ramírez, 28 anos, é o mais vistoso e provavelmente um dos últimos produtos de um sistema agonizante. Durante todo o século 20 a indústria fonográfica fez sucederem-se gênios da batuta promovidos e exaltados por um pesado esquema promocional e empresarial. Dudamel, que assumiu a direção artística da Filarmônica de Los Angeles, é legítimo produto desta máquina parideira de geninhos: nasceu em El Sistema, projeto musical de inclusão social venezuelano. Não deixa, porém, de ser curioso que, mesmo titular em Los Angeles, Dudamel continue a maravilhar a Europa com a Orquestra Jovem Simon Bolívar, formada por integrantes do Sistema. A Universal acaba de lançar no mercado nacional um CD gravado ao vivo em janeiro do ano passado em Caracas. No repertório, duas das mais gravadas obras de Tchaikovski: a Sinfonia nº 5 e o poema sinfônico Francesca da Rimini. A brilhante execução da Orquestra Simon Bolívar é mesmo um espanto. Projetos sociais costumam promover de fato a inclusão social, mas carecem de qualidade artística. Pois este é o inédito mérito do Sistema: rigor na formação técnica musical. Dudamel é espetaculoso ao reger, mas sabe fazer música como poucos. Tchaikovski não é fácil. Sucesso justo, portanto. O caso é que a fórmula convencional já está com prazo de validade vencida. Os ventos, afinal, sopram noutra direção. O que vale é mesmo a música ao vivo, mesmo que gravada e lançada em disco. O avassalador balde de democracia da internet na produção e recepção de música transformou a derrocada anunciada da indústria num inesperado e promissor recomeço. Músicos e seu público estabelecem agora contato imediato. Um diálogo virtual que leva ao limite o que Walter Benjamin chamou lá atrás de perda da aura da obra de arte. Ele louvava a democratização do acesso à arte. Mas o fato é que as artes performáticas parecem ter recuperado ao menos parte de sua aura neste início de século 21. Exaurido de tanta intimidade virtual, o indivíduo quer sentir-se parte do acontecimento artístico. Pode ser a utopia do retorno a uma situação primitiva. Não custa sonhar. Mas, sem dúvida, enquanto se martela o último prego na indústria convencional da música gravada, a música ao vivo floresce de modo incontestável. Durante meio século, músicos se esfalfavam para alcançar o status de gravar um disco. Hoje, ganham dinheiro na sua atividade-fim: em recitais e concertos. Ainda bem. É preciso aproveitar este bom momento e ampliar o público potencial da música clássica. Isso se faz desengessando o ritual do concerto, formato do século 19 hoje obsessivamente cultuado apenas pela chamada tribo erudita. Felizmente o gesso está trincando. Não por acaso, em um livro recente, The End of Early Music, o oboísta e pesquisador Bruce Haynes equipara os intérpretes convencionais que se limitam à execução fiel das grandes obras-primas do passado às bandinhas cover tipo Beatles4Ever. É música de museu, decreta. E aposta na tese de que a música clássica só voltará a ser viva e pulsante se os músicos voltarem a ser, como no barroco, não só intérpretes, mas improvisadores e coautores. Tese ousada, mas antenada com a atualidade. Dois notáveis exemplos comprovam seu acerto. O regente Kent Nagano, que assumiu há pouco a direção da Orquestra Sinfônica de Montreal, realizou um projeto radical, agora transformado num álbum duplo do selo Analekta. Intitula-se Beethoven: Ideals of French Revolution. Nagano convidou o crítico inglês Paul Griffiths para criar um espetáculo a partir desse tema e ele escreveu The General, para orquestra com soprano, coro e narrador, a partir da peça Egmont, de Goethe, para a qual Beethoven compôs a música incidental em 1809. Mas atenção: Griffith substitui as letras das músicas de Beethoven, abandona a trama de Goethe e traz a ação para perto de nós, em Ruanda, em 1993-94, onde houve o pavoroso genocídio de mais de 800 mil tutsis pelos hutus. O comissário era Romeo Dallaire, chefe da missão de Paz da ONU em Ruanda. Nenhum governo ajudou-o. A tragédia seguiu seu curso. "Quis trazer, para as plateias atuais, o peso de acontecimentos recentes e ressituar a música de Beethoven no mundo de hoje, onde vivemos um momento de extrema desumanidade.'' MONTEVERDI JAZZÍSTICO Christina Pluhar toca teorba, uma espécie de grande alaúde criado na Itália no século 17. Trabalhou com os papas da música historicamente informada, como Jordí Savall, Gabriel Garrido e Marc Minkowski. Fundou na década passada o grupo L?Arpeggiata. Austríaca, fixou-se em Paris e focou seu objeto de mergulho artístico no período 1600-1640 italiano. Seu grupo faz enorme sucesso em apresentações públicas. Pluhar realiza em suas performances o ideal de Bruce Haynes, de que, para manter viva a música, os intérpretes precisam ser improvisadores, arranjadores, coautores. Todo o CD Teatro D?Amore (Harmonia Mundi), que só traz músicas de madrigais variados de Monteverdi, é um espanto. Sobretudo a versão que o contratenor Philippe Jaroussky e L''Arpeggiata fazem da conhecidíssima canção Ohimé ch?io Cado. Nesta eles injetam tamanho swing que fazem Monteverdi ir literalmente para as ruas - ou seria um clube de jazz? A guitarra faz um "walking bass" tipicamente jazzístico; um cornet intromete-se e improvisa na metade final da performance; até o cravo brinca com blue notes. E a voz privilegiada de Jaroussky completa uma interpretação inesperada e maravilhosa. Irresponsabilidade? Não, diz Christina. "Não fomos nós quem pusemos jazz em Monteverdi, ele é que influenciou o jazz e escreveu este walking bass. Há vinte anos só toco música deste período, então acredito que já conseguimos fazer fluir naturalmente este universo sonoro, o que inclui, claro, o improviso." Afinal, Vivaldi não tocava Albinoni. Preferia tocar Vivaldi mesmo. E Bach, quando quis aprender com Vivaldi, adaptou livremente seus concertos. Se nem eles próprios consideravam suas obras intocáveis, talvez possamos embarcar nessa com tudo.

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