Lições da Revolução

Francesa Obras de Alexis de Tocqueville e Mona Ozouf se debruçam sobre o movimento

PUBLICIDADE

Por Daniel Piza
Atualização:

Fica difícil exigir de qualquer autor que tenha escrito mais que A Democracia na América, livro que em 1835 antecipou as mudanças que a sociedade americana traria ao mundo, o que o século seguinte se cansou de testemunhar. Mas Alexis de Tocqueville escreveu ainda O Antigo Regime e a Revolução, publicado em 1856 e que estava indisponível em tradução brasileira há muito tempo. Com a excelente tradução de Rosemary Costhek Abílio, a editora Martins Fontes traz de volta ao leitor uma obra-prima de história e pensamento. Tocqueville deixou dois clássicos para a modernidade que não podem ser ignorados. Nascido em 1805, o aristocrata francês formado em Direito escreveu sobre a democracia dos EUA depois de viajar por seu território e perceber que instituições mais descentralizadas e horizontais fortaleciam o modelo republicano, ao contrário do que se dizia. Embora o tenha escrito aos 30 anos, o livro é um primor de pesquisa e estilo. Em seu trabalho de maturidade, do qual deixou apenas o primeiro volume antes de morrer em 1859, as mesmas características se repetem e, em alguns momentos, se superam. O Antigo Regime e a Revolução é extraordinariamente bem escrito e fundamentado. Olhe que o desafio não era menor. Embora analisando um evento ocorrido 67 anos antes, e não um processo ainda em progresso como a democracia americana (Tocqueville ainda foi capaz de prever que uma guerra civil poderia acontecer nele, como de fato aconteceu em 1861), ele enxergou a complexidade da Revolução Francesa como ninguém até então. Sem sua obra não haveria hoje, por exemplo, livros como outro que acaba de ser lançado no Brasil, Varennes, de Mona Ozouf, com tradução de Rosa Freire d?Aguiar. A historiadora que foi parceira de François Furet - grande estudioso de Tocqueville - no Dicionário Crítico da Revolução Francesa se debruça na sequência de eventos de 21 de junho de 1791, "a morte da realeza", com os mesmos tipos de nuance e abrangência que Tocqueville ensinou. Rediscutir a Revolução Francesa, 220 anos depois, soaria pouco útil se não fosse por esse olhar de Tocqueville, tão atual numa época em que, apesar da hegemonia da democracia, ela continua a sofrer assaltos dos conservadores que a veem apenas como subproduto das necessidades do mercado e também dos nostálgicos que, a cada crise do capitalismo, clamam por intervenções burocráticas que asfixiam a liberdade da qual ela se nutre em essência. E em países com democracias imaturas, como o Brasil, apesar das juras tucano-petistas em contrário, ele deveria ser leitura obrigatória em universidades e redações. Um ciclo de apenas 25 anos não tem como constituir uma república verdadeiramente democrática. Tocqueville explica. Um ponto fundamental na interpretação dele fica explícito quando rebate os argumentos de Edmund Burke, o ensaísta inglês, outro grande estilista da prosa, que em suas Reflexões sobre a Revolução na França (clássico a ser reeditado pela Topbooks em setembro) criticou a Revolução por sua lógica cruel, por ter culminado na violência do Terror que era, ela mesma, uma negação dos valores mais libertários do Iluminismo, como os direitos humanos. Muitos conservadores que hoje tentam se apropriar de vertentes da tradição liberal fazem confusão entre Tocqueville e Burke. No entanto, Tocqueville em nenhum momento trata a Revolução Francesa como um erro, uma ruptura radical com tradições que poderiam ter sido renovadas de modo moderado. Tocqueville não cai nessa. Ele vê os episódios que se iniciam em 1789, com a tomada jacobina da Bastilha, como o resultado "súbito e violento" de uma "obra na qual dez gerações de homens haviam trabalhado". Mesmo que em muitos aspectos a ordem feudal da Europa já vinha sendo desfeita pelo avanço das cidades, das classes médias e das novas relações comerciais, o "antigo regime" ou a "antiga lei comum" continuava no substrato social. Essa obra de dez gerações precisava substituir as instituições feudais por "uma ordem social e política mais uniforme e mais simples, que tinha como base a igualdade de condições". Privilégios de sangue e casta não acabariam por diplomacia; e novos princípios como a liberdade de imprensa eram antimedievais. O que Tocqueville descreve é como essa criação de uma ordem mais uniforme e simples se traduziu em centralização administrativa, e o que descreveria no segundo volume seria como essa centralização foi levada a tal extremo, em nome da "estabilidade", que terminou sendo um retrocesso do qual a América nasceria livre. "A Revolução Francesa foi ao mesmo tempo seu flagelo e sua professora", resume. Ao longo do século 18, os governos municipais tinham "degenerado em pequenas oligarquias", que por sua vez se tornavam refratárias ao avanço liberal, aos direitos de cidadania, com a pulverização de autoridades e tributos (soa familiar?). A Revolução foi uma expressão da insustentabilidade da situação. Que tenha criado outra ordem que mais tarde também se tornaria insustentável por seu teor tirânico não tira a importância do marco. A narrativa esperta da fuga do rei Luís XVI por Mona Ozouf também demonstra isso. Curiosamente, ela dá mais destaque às interpretações dos romancistas que às dos historiadores, pois autores como Stendhal e Dumas percebiam melhor o peso dos acasos e das simbologias no curso da história. A tentativa de escape da realeza foi um golpe final em sua própria imagem, ao confirmar a noção crescente entre o povo de que a corte era supérflua, de que a unidade nacional já não dependia de seus ritos rococós. No vaivém dos atos, na indecisão frívola de Luís e Maria Antonieta, a autora projeta as armadilhas em que a própria monarquia se ajudou a cair - o que significa que caiu não por uma espécie de destino histórico, e sim por uma conjunção de variáveis. Por se achar indissociável da pátria, o rei não viu que a pátria tinha mudado. O Antigo Regime e a Revolução Alexis de Tocqueville Martins Fontes 296 págs., R$ 44,50 Varennes - A Morte Da Realeza, 21 De Junho De 1791 Mona Ozouf Cia. das Letras, 352 págs., R$ 53

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.