Lição de despedida

PUBLICIDADE

Por Lucia Guimarães
Atualização:

É impossível prever se, nesta segunda-feira, o responsável pelo tema desta coluna ainda estará entre nós. Em todas as redações americanas, os terminais de editores devem abrigar, há meses, um alentado obituário de Ted Kennedy, o Leão do Senado americano. Na semana passada, a divulgação de uma carta de Kennedy ao governador de Massachusetts, com data de 2 de julho, foi vista como sinal de que seu fim estaria próximo. O senador, diagnosticado com tumor no cérebro em 2008, pediu ao governador Deval Patrick para apressar sua sucessão e impedir que sua morte privasse os democratas de menos um voto na batalha pela reforma do sistema de saúde americano. Enquanto outros se preocupavam em celebrar o extenso legado de Ted Kennedy, que passou 47 dos seus 77 anos no Senado, o irmão caçula de John e Robert comportava-se como um cavalheiro diante da morte iminente e planejava a saúde alheia. A notícia da carta bateu na internet no momento em que eu tentava me distrair com o Blackberry, fechada num cubículo de uma clínica de radiologia. Ao ouvir meu nome habitualmente mal pronunciado por uma enfermeira, marchei, estoica, para o encontro com a médica. A conversa que se seguiu dificilmente teria se passado no Rio, a cidade que insisto em chamar de minha. A radiologista de expressão crispada observava a tela enquanto prosseguia com a ultrassonografia e falava muito rápido. "Não consigo explicar o seu desconforto. Não consigo enxergar bem esta área. Volte daqui a um mês. E avise à sua médica que achei um pólipo de 6 milímetros." Enquanto tentava recuperar a dignidade afetada pelo exame e o roupão dois tamanhos menores do que o meu, perguntei, de bate pronto: você está pensando em algo maligno? Não me referia a espíritos, claro, mas ao temido "c". "Não", ela respondeu, impaciente, como se eu tivesse tomado nota baixa numa prova. "Veja se sua médica quer extrair o pólipo no hospital e volte aqui." A consulta deve ter durado oito minutos. Como todo paciente que contempla a possibilidade de má notícia, comecei a digerir a cena anterior em câmera lenta, enquanto pagava a conta exorbitante. Não tenho motivo concreto para temer um câncer. Nem para acreditar que estou 100% fora do radar da suspeita. Tenho de voltar aqui. A minha médica, avessa a alarmismo, riu do pólipo ("já tinha visto, está quieto"), deu uma explicação bem-vinda para o desconforto e reclamou que a radiologista devia ter me feito beber muitos líquidos para me "enxergar" melhor. A nuvem sobre a minha cabeça se dissipou. A franqueza sobre a doença e a morte é um duro aprendizado para uma expatriada brasileira. Hoje estranho a naturalidade com que médicos mentem para os pacientes sobre diagnósticos. Uma amiga carioca me contou que sua mãe havia agravado sintomas de uma doença que não sabia ter. Ao questionar o médico, ele disse que não queria alarmar uma mulher idosa e conhecida pelo nervosismo. Suspeito que o médico estava poupando a si mesmo. A formação médica tradicional não prepara os profissionais para falar de morte. Afinal, eles são treinados para prolongar a vida. E têm de reforçar suas próprias defesas psicológicas para processar tanta mortalidade alheia sem ser afetados pela paralisia da morbidez. Já ouvi, inúmeras vezes, notícias de doenças sérias entre conhecidos cariocas transmitidas como um segredo de Estado. Como se adoecer fosse uma falha de caráter. Diante do tabu de se discutir o assunto, entendo que o paciente torna o fardo emocional ainda mais pesado por escondê-lo. Porque a nossa cultura vira o rosto para o inevitável de uma forma que pune o protagonista da narrativa? Há poucos anos, observei uma movimentação entre amigos que me lembrou a distância entre a minha formação cultural e a deles. Uma artista divorciada, com cerca de 75 anos, amiga de uma amiga, descobriu um câncer em estágio avançado. Pesou as chances de um tratamento produzir resultado e permitir alguma qualidade de vida. Reuniu os quatro filhos adotivos, anunciou sua escolha. Convidou a nossa amiga comum para uma semana de pintura na paradisíaca Monhegan, uma ilhota a 16 quilômetros da costa do Maine, colônia de artistas, sem carros ou estradas. Contatou o filho de outra amiga comum, que tinha acesso a um médico não identificado. Recebeu seu pacote pelo correio. Arranjou um lar adotivo para o gato. Quando os sintomas da doença se tornaram insuportáveis, despediu-se de todos, ingeriu as pílulas e morreu na própria cama. A primeira página do New York Times da última quinta-feira estampava a foto do suave dr. Sean O?Mahoney, um irlandês que clinica no Hospital Montefiore do Bronx. A sua especialidade é um sinal de que o establishment hipocrático acordou para a necessidade de humanizar o final da vida. O dr. Mahoney dispensa tratamento paliativo. Ele senta cara a cara com um paciente terminal, avalia a sua disposição de conhecer toda a verdade e ajuda a planejar o conforto do fim. É preciso muito mais do que excelência científica para abraçar esta vocação. Mas, como lembrou o Leão do Senado, a dignidade não precisa morrer antes do paciente.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.