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Lembranças de uma amiga

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Por Redação
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A escritora Natalia Ginzburg (1916-1991) foi uma das amigas próximas de Cesare Pavese. Com a morte do poeta, ela escreveu um artigo, Retrato de um Amigo, em homenagem a ele. Os seguintes trechos têm a tradução de Maria Betânia Amoroso e o texto foi publicado na íntegra na Revista Ficções, editada pela 7Letras, em junho de 2000. "Nos últimos anos seu rosto estava sulcado e escavado, devastado por pensamentos perturbadores, mas conservou até o último momento, na sua figura, a gentileza de um adolescente. Tornou-se, nos último anos, um escritor famoso, mas isto não mudou em nada seus hábitos esquivos, nem a modéstia da sua atitude, nem a humildade, conscienciosa beirando o escrúpulo, do seu trabalho do dia a dia. Quando perguntávamos a ele se gostava de ser famoso, respondia com um sorrisinho de soberba, que sempre esperara por isso - tinha, às vezes, um sorriso astuto e soberbo, pueril e malévolo, que cintilava e desaparecia. Mas ter sempre esperado significava que alcançada a coisa não lhe dava mais nenhuma alegria: porque era incapaz de desfrutar das coisas e amá-las, depois que as conquistava. Dizia conhecer sua arte tão a fundo que ela não oferecia mais nenhum segredo: e não oferecendo mais segredo, não o interessava mais. (...) Morreu no verão. Nossa cidade, no verão, é deserta e parece muito grande, clara e sonora como uma praça; o céu é límpido, mas não luminoso, de uma palidez láctea; o rio escorre plano como uma estrada, sem exalar umidade, nem frescor. Das alamedas se levantam lufadas de poeira; passam, vindo do rio, grandes caminhões carregados de areia; o asfalto da avenida fica todo salpicado de pedrinhas que cozinham no breu. Ao ar livre, debaixo dos guarda-sóis com franjas, as mesinhas dos cafés estão abandonadas e ardendo. Nenhum de nós estava lá. Escolheu para morrer um dia qualquer daquele tórrido agosto, e escolheu um quarto de hotel próximo à estação, querendo morrer, na cidade que lhe pertencia, como um forasteiro. Havia imaginado sua morte numa poesia antiga, de muitos e muitos anos atrás: Não será necessário abandonar a cama./ Só a aurora entrará no quarto vazio./ Bastará a janela para vestir cada coisa/ De uma claridade tranquila, quase uma luz./ Pousará uma sombra escarna no rosto supino./ As lembranças serão coágulos de sombra/ Tão escondidas como antigas brasas/ Na lareira. A lembrança será a chama/ Que ainda ontem consumia os olhos apagados. Fomos, um pouco depois da sua morte, às colinas. Havia restaurantes pela estrada, com parreiras avermelhadas, jogo de bocha, uma porção de bicicletas; havia barracas com espigas de milho, feno cortado secando sobre os sacos: a paisagem, à margem da cidade e no limiar do outono, que ele amava. Vimos, nas encostas cobertas de verde e nos campos arados, surgir a noite de setembro. Éramos todos muito amigos, e nos conhecíamos há tantos anos; pessoas que haviam sempre trabalhado e pensado juntas. Como acontece entre quem se gosta e é atingido por uma desgraça, procurávamos agora gostar ainda mais e de acudir e proteger um ao outro, porque sentíamos que ele, de alguma maneira própria e misteriosa, havia sempre nos acudido e protegido. Estava mais do que nunca presente naquela encosta da colina. Cada olhar que retorna, conserva um gosto/ De mato e coisas impregnadas de sol na tarde/ Sobre a areia. Conserva um sopro de mar./ Como um mar noturno é esta sombra vaga/ De ânsias e arrepios antigos, que o céu resvala/ E cada tarde retorna. As vozes mortas/ Se parecem a arrebentação daquele mar."

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