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Kawabata, dividido entre o passado e a inovação

Nobel de 1968 rimou tradição japonesa com revolução literária

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Por Redação
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Kawabata foi citado no último livro de Gabriel García Márquez, Memórias de Minhas Putas Tristes, publicado em 2004, relato de um crítico nonagenário que se dá de presente uma noite de amor com uma menina virgem. Se a história lhe parece familiar, releia A Casa das Belas Adormecidas, um dos cinco livros do escritor japonês já lançados pela Estação Liberdade. Nele, jovens virgens são dopadas para saciar o apetite de lascivos senhores. É mais que uma coincidência: é uma prova incontestável da influência perene da Kawabata sobre a literatura ocidental, decorridos 36 anos de sua morte, em 1972, por inalação de gás, na estância de Zishim, aos 72 anos. Kawabata, parodoxalmente, havia condenado o suicídio quatro anos antes, em seu discurso ao receber o Nobel. Considerando a flutuação de suas posições políticas (conservadoras) e sua incurável melancolia, é possível entender que esse não deve ter sido um gesto de desespero, mas premeditado. Kawabata imitou seu amigo Mishima, que se matou dois anos antes. O autor de Sol e Aço convenceu-o a assinar um manifesto pela reafirmação dos valores tradicionais do Japão, ameaçado no pós-guerra pela invasão da cultura estrangeira. Outro paradoxo: tanto Mishima como Kawabata beberam na fonte da cultura ocidental. De Kawabata, a Estação Liberdade lança agora o primeiro sucesso crítico do escritor, Izu-no Odoriko (A Dançarina de Izu), escrito em 1925. Autobiográfico, o livro conduz o leitor a uma viagem ao passado do escritor, mais exatamente aos tempos de estudante de Kawabata, marcado pela ausência de quase todos os seus entes queridos, excetuando-se o avô - ele perdeu o pai aos 2 anos, a mãe aos 3, e a única irmã aos 9 anos. Órfão, foi criado pelo avô cego, que morreu quando o neto tinha apenas 16 anos e acabara de se instalar num dormitório da Universidade de Tóquio. A Dançarina de Izu revela o primeiro impacto de uma paixão provocada pelas pernas de uma bailarina adolescente de 14 anos. Kawabata, como García Márquez, sofria da síndrome de Lolita. Essas garotas provocantes - mas proibidas - povoam romances como A Casa das Belas Adormecidas e pequenas novelas como Tanpopo. O francês Olivier Rolin, que estudou profundamente a obra do escritor, observa que essa atração tinha algo de mórbida. As virgens do escritor parecem condenadas a atrair homens com seus corpos quase fragmentados (Kawabata raramente descreve o corpo inteiro, concentrando-se em pontos como o pescoço ou os seios). Pode ser. O fato é que nenhuma delas parece fruto de uma criação exclusivamente literária - e, de fato, muitas são baseadas em figuras reais, como a gueixa Komako de O País das Neves, em que erotismo e obsessão tanatológica andam de mãos juntas. Essa junção de elementos aparentemente díspares caracteriza boa parte da produção literária do autor japonês, especialmente Kyoto (Estação Liberdade), história de duas irmãs separadas ainda jovens e que, seguindo diferentes destinos, funcionam como representações metafóricas do Japão tradicional e do Japão moderno. O personagem do tecelão Takishiro, pai adotivo de uma das meninas, é prototípico. De certa forma, espelha o próprio Kawabata, igualmente deprimido e inconformado com a ocidentalização de seu país. O livro mais famoso de Kawabata é O País das Neves (1948), história de uma relação amorosa, a de um esteta e uma velha gueixa nas montanhas, sempre cobertas pela neve e mergulhadas na escuridão. É uma parábola sobre a solidão humana, responsável pela criação de imagens virtuais tão intensas quanto as reais, e sobre os sentimentos, tão instáveis quanto a luz que transforma a visão do esteta Shimamura. Em duas palavras: poético, arrebatador.

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