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Kafka e Beckett previram o futuro

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Por Redação
Atualização:

A ideia de ''totalidade'' que animou a ''razão humana'' por milênios acaba de falecer. Acabou de morrer com o socialismo fracassado. O homem pensa como um organismo, deseja que a vida seja um corpo funcional como o nosso. Tudo aspirava a ser ''um''. Toda razão sempre aspirou à totalidade. Agora só há fragmentos. Os pensadores ainda fingem gostar do fragmentário, do caótico, do incontrolável. Mentira. Cada fragmento se reerige em totalidade. De onde falamos, quando pedimos o Bem? Falamos de uma ''harmonia perdida'', como se ela fosse ainda possível, ou tivesse algum dia existido. Só a ficção previu a ilógica do mundo atual. Kafka e Beckett previram o mundo de hoje muito mais claramente que os cientistas políticos. Disseram para Brecht: ''Kafka foi o primeiro autor bolchevista''. Brecht observou: ''E eu sou o último escritor católico''. Por que praticar o Bem se ele não é mais possível? O Mal virou uma necessidade social. Não dá mais para viver sem praticar o Mal. Não dá para estragar a nossa felicidade cada vez que olhamos para crianças famintas. O Mal é um mecanismo de defesa. O Mal é sempre o ''outro''. Nunca somos ''nós''. Hitler nos absolveu a todos. Stálin nos fez santos. Achamos que a ''tarefa democrática'' seria um subproduto do capitalismo, como se ele almejasse a diferença, a contemplação das diversidades. Doce ilusão achar que o capitalismo almeja o heterogêneo. Vejam a obviedade da crise financeira, gerada pelos velhos vícios da voracidade e do egoísmo. Sempre houve um grande ''auê'' com as injustiças da ditadura. Mas, e o Mal dos democratas? Estamos na era do erro inextrincável. Do crime ''sem criminosos''. Nem Bem nem Mal. São as coisas que estão controlando os homens. É o CO2 que controla os governos e não o contrário. As coisas tomaram o poder. Cito Heiner Muller: ''A máquina odeia o homem, pois para todo sistema de ordem ele apresenta um fator de perturbação. O homem faz sujeiras, não funciona direito. Logo, é preciso que ele se vá, o capitalismo deseja a perfeição do sistema estrutural da máquina''. Os fiascos de hoje são defeitos de fabricação. Ou o lixo que o lixo do capitalismo gera. A gripe suína nasce de onde? Deste grande pesadelo poluído e sem controle. No Brasil, muitas catástrofes são ''fora do lugar''. A evolução técnica convive com o ambiente de miséria e dá no ''malfunctioning''. Explodem pela soma de novas tecnologias com o excesso de atraso: traficantes no morro com supermetralhadoras. Todos sabíamos que a bolha poderia explodir. Explodiu. Esse malogro traz uma nova era?? Terrível ou não, alguma verdade vem aí. Que nova verdade será essa? A prudência, a parcimônia? Nossa catástrofe maior é a impotência política, Há também o naufrágio da insensibilidade crescente diante do horror. Os fatos estão além da piedade. Há o tédio crescente pela catástrofe, quando a alma vira uma grande pele de rinoceronte. Mas, há ainda um grande amor brasileiro pelo fracasso, pela falência de propósitos. Quando o fracasso acontece, é um alívio. A fracasso é bom porque nos tira a ansiedade da luta. Já perdemos, para que lutar? O Mal do Brasil não está no assassino serial, está nos pequenos psicopatas que nos roem a vida. O Mal do Brasil não está na infinda crueza da burguesia nordestina (pior que a do sul e sudeste); está muito mais no seu riso, na sua cordialidade. O Mal não está na máfia das passagens aéreas no Congresso, nas roubalheiras, mas nos simpáticos jaquetões dos nossos parlamentares, em suas gargalhadas soltas. Ao denunciar o Mal, vivemos dele. Vivemos da denúncia e com ela lucramos. Eu lucro sendo um cara ''legal'' que denuncia o Mal e, assim, escapo da fome, comendo a comida de quem lamento. Como quase nada acontece no Brasil, a não ser o desatino, o erro da tentativa, o tiro pela culatra, a incompetência arrogante, quando um desastre ou escândalo acontecem, a plateia fica calma. Nossa vida fica mais real e podemos então, aliviados, botar a culpa em alguém. E dizemos: ''Viram? Nada dá certo aqui?a culpa é deles?'' Eles quem? Há uma tradição de que nossa vida é um conto-do-vigário em que caímos. Somos sempre vítimas de alguém. Nunca somos nós mesmos. Ninguém se sente vigarista. Há os fiascos em preparação, como as reformas do Estado que o Congresso não deixa fazer; há as catástrofes da lentidão dos processos jurídicos; há os eternos denunciadores do fim, fotógrafos, escritores, jornalistas (eu?), gente que denuncia o mal do mundo para o mundo, denúncias que são um pleonasmo maldito para nada. A vitória é burguesa. ''Seja marginal, seja herói''. O fracasso é legal, a vitória é careta. A vitória dá culpa; o fracasso é um alívio. A crise, a catástrofe, o bode-preto têm um sabor de ''revolução''. É como se a explosão ''revelasse'' algo, uma tempestade de merda purificadora. Além disso, para os carbonários, depois de tudo arrasado, a pureza renasceria do zero. O Brasil é visto como um grande ''bode'' sem solução - paraíso da esquerda pessimista, dos militantes imaginários. Quem quiser positividade é traidor. A Academia cultiva o ''insolúvel'' como uma flor. Quanto mais improvável um objetivo, mais ''nobre'' continuar tentando. O masoquista se obstina com fé no impossível. A falência nos enobrece. O culto português à impossibilidade é famoso. Numa sociedade patrimonialista como Portugal do Sec. 16, onde só o Estado-Rei valia, a sociedade era uma massa sem vida. Suas derrotas eram vistas com bons olhos, pois legitimavam a dependência ao Rei. Fomos educados para a desgraça. Até hoje somos assim; só nos resta xingar e desejar o mal do país. Vejam como o Brasil se animou com a crise atual. Assim como o atraso sempre foi uma escolha consciente no século 19, o abismo para nós é um desejo secreto. Há a esperança de que no fundo do caos surja uma solução divina. ''Qual a solução para o Brasil ?'', perguntamos. Mas, a própria ideia de ''solução'' é um culto ao fracasso. Não nos ocorre que a vida seja um processo, vicioso ou virtuoso e que só a morte é solução. Para o Bem ou para o Mal.

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