PUBLICIDADE

Juan Carlos Onetti e a salvação pela escrita

Nascido há 100 anos em Montevidéu, ficcionista é um clássico do continente

Por Eric Nepomuceno
Atualização:

"Você é casado com a literatura. Eu, não: ela é minha amante." A frase, dita por Juan Carlos Onetti a Mario Vargas Llosa, define com precisão o maior autor da literatura uruguaia, que nasceu há 100 anos, em 1º de julho de 1909. Onetti nunca teve método. A sua era uma disciplina singular. Durante um tempo, escreveu a lápis num caderno de capa dura e folhas brancas. Houve períodos de caneta de tinta preta e cadernos de folhas pautadas. E também dos bloquinhos baratos. Sempre à mão. Dizia que a caligrafia é mais lenta que a datilografia, mais lenta que as ideias, e você é obrigado a sentir na mão o peso de cada palavra. Passava por épocas em que anotava frases esparsas que um dia, talvez, se encontrassem e se juntassem. Nessa turbulência estava a sua disciplina: justamente em não haver nenhuma. Assim ele pôs no papel contos absolutos e romances invulneráveis. Em um desses romances, A Vida Breve, um personagem diz: "Alguma coisa repentina e simples ia acontecer, e eu poderia me salvar escrevendo". Onetti soube, desde sempre, que coisas simples e repentinas aconteceriam, e que a única salvação seria escrever. Era um homem alto e espigado, dono de um cinismo a toda prova, de um sarcasmo ácido, de um humor inesperado, de silêncios infinitos. Um pessimista sem remédio. Outro de seus personagens diz: "O mau não é que a vida nos promete coisas que não nos dará nunca; o mau é que sempre as dá, e deixa de dá-las." Assim de amarga era a sua visão do mundo. Padecia insônias cruéis. No meio da noite rabiscava frases, imagens, temores, e sua literatura é toda feita de sonhos e pesadelos, uma atmosfera nebulosa, enevoada, partida. Impregnada de todas as grandezas e misérias da vida. A literatura da própria condição humana, como observou outro mestre, o paraguaio Augusto Roa Bastos. Tinha uma capacidade única para se abstrair do mundo, de se isolar. Não por acaso passou anos e anos literalmente deitado. Vestia um pijama azul-claro, empilhava livros policiais ao lado da cabeceira, e passava meses sem sair da cama, lendo, fumando, bebendo um vinho tinto áspero que mais tarde, nos seus últimos anos, foi substituído por uísque diluído em água. Na varanda da cobertura do prédio de número 31 da Avenida das Américas, em Madri, sua mulher criou um pequeno jardim, para que ele pudesse ver algo verde sem precisar sair do quarto. Em vão: mesmo quando ela abria a persiana para o sol, ele preferia a parede em branco. Isolado da luz, isolado de tudo. Assim foram seus últimos 12 anos, em que quase não saiu de casa - ou, mais exatamente, da cama. Era, porém, um recluso peculiar: não saía por não querer ver gente, mas recebia visitas, até de quem mal conhecia. As visitas eram levadas para o quarto, e passavam horas alternando com ele prolongados silêncios e jorros de memórias reais ou inventadas ali, na hora. Quando os demônios de seu humor ferino estavam aplacados, era um grande contador de histórias. Contava, por exemplo, que na juventude jogou bola, nos tempos do Uruguai aristocrático, quando era elegante praticar o football. Dizia ter conhecido Carlos Gardel no porto de Montevidéu, e que escreveu para ele letras de tangos, das quais não se lembrava mas que se tornaram clássicas. Tinha orgulho de uma façanha que nunca foi comprovada: seu primeiro romance, O Poço, trazia na capa um original de Picasso. Contava que certo dia estava com um amigo na varanda de um café quando viram o pintor numa mesa próxima. Puxaram conversa, e conseguiram surripiar um desenho recém feito, que se tornou capa da edição original da Garamond, de Paris, impressa no dia 30 de abril de 1930. Apenas três exemplares sobreviveram: um, na biblioteca do Château Mouton, do barão Philippe de Rotschild; outro, no Museu Oceanográfico e de Pesca de Hamburgo, por um equívoco: alguém achou que Pozo fosse peixe em espanhol. O terceiro foi esquecido no armário de um apartamento onde Onetti morou em Montevidéu. Ninguém jamais viu um só exemplar. De concreto, o que se sabe é que O Poço foi publicado em 1939 pela Ediciones Signo, do Uruguai, numa edição de 500 exemplares, vendidos de mão em mão. E que, apesar da capa convencional sem signo algum de Picasso, mudou, e para sempre, a história do romance contemporâneo em toda a América hispânica. "A minha foi uma infância sem história porque foi uma infância feliz", dizia Onetti. Depois, veio um tempo de aventuras e ousadias, possivelmente inventadas. "Descobri as grandezas e misérias da vida em plena adolescência", contava. No porto de Montevidéu conheceu as mulheres e os cigarros, e passava horas vendo os cargueiros que chegavam do outro lado do mundo. "Imaginava as histórias desses barcos e de sua tripulação", contava. E concluía: "Ou seja: escrevia as suas histórias." Foi garçom, estafeta, tentou ser contrabandista de bebidas, escreveu livrinhos policiais com nome falso, foi profissional de bilhar, contava ele - sem testemunhas. Aos 20 anos quis ir para a União Soviética para ver de perto a revolução dos bolcheviques. Não conseguiu. Tinha 21 anos quando se casou pela primeira vez. Passou a trabalhar, então, como jornalista, ofício que exerceu por décadas. Onetti nasceu em Montevidéu. Não chegou a concluir o segundo grau escolar. Em 1930, um ano antes do nascimento de seu filho Jorge, viajou pela primeira vez para Buenos Aires. Foi no jornal La Prensa, da capital argentina, que publicou seu primeiro conto. Em 1934, aos 25 anos e de volta a Montevidéu, se casou pela segunda vez - com Maria Julia, irmã de Maria Amália, sua primeira mulher. Cinco anos mais tarde se tornou secretário de redação do recém-fundado semanário Marcha, que se tornaria antológico na América hispânica. Em 1941 retornou a Buenos Aires, onde foi redator chefe do escritório da agência Reuters. Morou lá até 1955. Nesse período publicou vários livros. O mais importante deles, e talvez de toda a sua obra, A Vida Breve, apareceu em 1950, trazendo um cenário definitivo no panorama literário latino-americano, a cidade de Santa Maria, um mundo imaginado. Onetti explicou: "Morei muito tempo em Buenos Aires, e essa experiência está presente em minha obra. Mas também está presente Montevidéu, com a sua melancolia. Por isso fabriquei Santa Maria. Fora dos meus livros, ela não existe. E se existisse, eu moraria lá e inventaria uma cidade chamada Montevidéu." Durante anos e anos foi uma figura mítica no cenário da literatura hispano-americana. Livros como O Estaleiro, de 1961, ou Junta-Cadáveres, de 1964, além de novelas curtas e contos absolutos, asseguraram a ele um espaço próprio entre os maiores dos grandes de seu tempo. Mas passava ao largo das listas de êxito. Em 1974, foi preso pela ditadura militar uruguaia. Três meses depois foi libertado e mudou-se para Madri. Nunca mais voltou a Montevidéu, nem a Buenos Aires. Ficou em sua Santa Maria. Contradições da vida: só em seus últimos anos, já na Espanha, chegou ao grande público. Seu derradeiro livro, Cuando Ya No Importe, de 1993, estacionou durante semanas e semanas entre os mais vendidos em todo o mundo hispânico. Ele morreu um ano depois, em 30 de maio de 1994, quando nada mais importava. Eric Nepomuceno é escritor e tradutor. Seu último livro é Antologia Pessoal (Record)

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.