Jogo literário que revela a perda da inocência

No livro, Cees Nooteboom narra duas histórias, ambas sobre as provações

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Por Ubiratan Brasil
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Eterno cotado para o Nobel de literatura, Cees Nooteboom tem garantido, ao menos, o aplauso de colegas ilustres. Para a inglesa A.S. Byatt, por exemplo, trata-se de ''um dos maiores romancistas modernos''. ''Estilista cuidadoso da prosa, com notável inclinação filosófica'', nas palavras de um já ganhador do Nobel, o sul-africano J.M. Coetzee, o escritor holandês confirma o elogio em Paraíso Perdido, no qual promove um instigante jogo do livro dentro de outro livro. Basta ler o prólogo: dentro de um avião, preparando-se para uma viagem de curta duração, um escritor observa as pessoas que o rodeiam até se fixar em uma bela mulher, que folheia um livro de poucas páginas, mas recheado de muitos capítulos. Depois de muito insistir, ele consegue ler o título. ''Trata-se deste livro, um livro do qual ela desaparece, seguida por mim'', escreve Nooteboom. ''Livro, do qual, de momento, (ela) só conhece a dedicatória, que eu nem li nem escrevi.'' Em seguida, começa a história de Alma que, ao som de Bjõrk a todo volume, dirige até a favela de Paraisópolis, onde, de madrugada, é violada por um grupo de homens. Um anjo arrancado do paraíso. O invisível torna-se visível, como pretendia o pintor Paul Klee, cujo quadro Angelus Novus, o Anjo do Progresso, que avança recuando e deixando atrás dele as ruínas, inspira a epígrafe do livro. É o prenúncio da viagem a ser iniciada por Alma, em que ela vai definitivamente perder a inocência. Sobre isso, Nooteboom comenta na seguinte entrevista. De onde vem esse sentimento de não ter pátria, que marca seus personagens? Bem, não sou assim, é preciso logo deixar claro (risos). Tenho residência fixa na Holanda, embora passe boa parte do ano viajando. Minhas personagens também: elas moram em São Paulo. Mas, como são estudantes de arte, têm fascínio pela Austrália, que acreditam ser o sonhado país onde estão os ancestrais míticos. Para mim, é importante deixar isso bem claro, daí meu interesse em saber se você acreditou que Alma e Almut poderiam representar, de fato, duas brasileiras. É que, na Austrália, percebi que alguns leitores não reconheciam meus personagens australianos como factíveis. É possível dizer que São Paulo e a cidade australiana de Perth, que estão no livro, seriam a representação de duas cidades arruinadas, incompletas, que precisariam ser unidas para então se criar algo novo? Acredito que sim. São Paulo, você conhece bem, é uma metrópole gigante, marcada por diversos problemas. Perth, ao contrário, é uma das metrópole mais isoladas de todo o planeta. Uma cidade pequena e com uma população basicamente de brancos. Assim, as duas garotas viajam pela Austrália até chegar a Perth, onde se envolvem com um projeto de arte conceitual, The Angel Project, no qual anjos (na verdade, pessoas fantasiadas) espalham-se pela cidade, incitando os visitantes a procurá-los em uma inteligente caçada. Mas a mudança não provoca o efeito esperado nas garotas, especialmente em Alma. Tão logo desembarca, ela percebe como suas expectativas eram inúteis e ingênuas. ''Minha Austrália foi uma ficção, uma fuga'', diz ela, ''percebi no momento em que o avião pousou''. Em épocas angustiantes como a atual, é comum buscar, ainda que apenas na imaginação, o mundo ideal? Creio que sim. Veja o exemplo das minhas personagens: são garotas especiais, estudantes de arte. Uma delas, Alma, envolve-se com anjos por conta dessa pesquisa e, depois de sofrer uma terrível experiência, busca reencontrar-se a partir de uma espécie de cura que acredita existir na Austrália. Lá, em meio a paisagens inóspitas, ela faz descobertas a respeito de si mesma, sobre quem ela realmente é. Especialmente em Perth, onde ambas arrumam trabalho daquela forma engraçada, ou seja, vestidas de anjo. As artes têm uma particular presença no livro. Qual a importância da pintura para o senhor? É profundamente importante, base para meu trabalho. Aqui na Europa, aliás, acontece um fenômeno que não sei se se repete no Brasil: as pessoas buscam admirar obras de arte em igrejas. Afinal, tornou-se desgastante passar duas horas, por exemplo, no Museu do Prado, em Madri, para se deslumbrar diante de algumas pinturas, um fardo que tira a simbologia do ato da admiração. Assim, nas igrejas, por conta de seu próprio ambiente, as pessoas parecem reconquistar a transcendentalidade esperada diante de uma obra. Para alguns, aliás, tornou-se um ato tão necessário que o repetem diariamente, ao menos durante uma hora. Também interessante é o jogo literário que aparece na história, em que um livro surge dentro do outro. Como foi criar isso? Bem, trata-se de algo que não convém falar muito para não estragar a surpresa (risos). Primeiro escrevi a segunda parte do livro - na verdade, inspirado por um convite que me fez uma associação médica que pedia qualquer história desde que tivesse alguma conexão com a medicina. Fiz assim, foi publicado. Mas logo percebi que a trama não se resumia àquilo, havia algo mais. Então, escrevi a primeira metade. Finalmente, quando um dia eu viajava de trem de Berlim ao sul da Alemanha, vi uma mulher entrar no vagão, com um livro que não identifiquei. Assim, na minha ficção, imaginei que ela carregava Paradise Lost, enquanto meu personagem-autor escrevera Lost Paradise. E eles discutem sobre esses livros no capítulo final, resultando em um jogo literário. O que me interessa é que ambos tratam da perda da inocência . Trecho As pessoas aqui são as mais antigas do mundo. Têm vivido neste país há mais de quarenta mil anos; mais próximo da eternidade que isso, impossível. Uma noite eu saí de carro para dar uma volta, e veja onde vim parar. Eu sei que a coisa não é bem assim, mas na minha cabeça é, sim. Nada do que eu penso é aceitável, mas quem pode me impedir de pensar o que eu quiser? Fito ao meu lado um homem adormecido, que parece ter vivido mais de um século, por mais novo que seja. Está deitado no chão, enrolado como um bicho. Ao abrir os olhos, torna-se velho como uma pedra, como os lagartos que se vêem aqui no deserto, porém se trata de uma velhice não acentuada, leve, já que todos os seus movimentos são leves, como se ele não sentisse o peso do corpo.

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