Intersecções entre sujeito e história

Estruturalistas, Lévi-Strauss à frente, provocaram polêmica em época dominada pelos seguidores de Marx, Freud e Sartre

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Por Leda Tenório da Motta
Atualização:

As estruturas não saem às ruas, denunciavam os estudantes do maio de 1968, insinuando distância indolor da realidade pela qual se pautavam, segundo eles, Lévi-Strauss e seus companheiros. Foi em meio a esse clima de denúncia que Roland Barthes, um dos companheiros em questão, deixou a França, em 1969. E foi dentro desse mesmo contexto que, pouco depois da partida de Barthes, Jacques Lacan recebeu vaias em Vincennes, quando de uma visita ao campus que ficou famosa, não apenas porque o inconsciente foi aí recusado pela gauche, mas porque, para impor respeito, o psicanalista que, junto com Lévi-Strauss, redefiniu a proibição do incesto como um operador simbólico, contra a idéia de que seria um evento de fato ocorrido na horda primitiva, teve que lembrar aos alunos sublevados que havia, um dia, pertencido aos quadros do movimento surrealista, e não era tão reacionário assim. Que tão brilhante escola de pensadores tenha despertado tão viva oposição da parte de tão bela revolta juvenil não deixa de ser indicativo do quanto a palavra "estrutura", de par com a palavra "signo", podia ser incômoda, nesses tempos em que ainda imperava a palavra "homem". E não apenas para os leitores de Marx, Adorno e Guy Débord, que reclamavam da ausência da vida real nos domínios estruturalistas, entendendo por vida real as condições materiais de existência nas sociedades capitalistas. Mas também para todos aqueles que, somente interessados na psicologia profunda, acusavam uma falta de reconhecimento da dimensão da subjetividade no método straussiano. Ou melhor dizendo saussuriano-straussiano, já que, tendo Lévi-Strauss à frente, toda essa elite universitária se assumia devedora da lingüística de Saussure, com sua demonstração de que a "langue" é uma bateria combinatória, de elementos diferenciais de tal modo organizado que cada um só tem valor por oposição ao outro, o sentido nada mais sendo, assim, que um efeito dessas tensões. Aos politizados e aos despolitizados, a assim chamada vida real proporcionaria um acontecimento tão trágico quanto espetacular, que, aparentemente, vinha dar razão a todo mundo. Esse acontecimento foi o break down nervoso de Louis Althusser, um representante do método no campo da filosofia política, que havia revolucionado a leitura de O Capital com uma obra que se tornara uma bíblia das novas esquerdas: Pour Marx. Em 1980, num surto, Althusser estrangulou a própria mulher, sendo recolhido a um asilo psiquiátrico, depois de considerado inimputável. O que, de imediato, foi tomado como um alerta no sentido de que os valores do humanismo não podiam ser derrubados pelas categorias gramaticais. Era a tragédia pessoal que, cobrando o seu preço, se infiltrava no seio da impessoalidade, e ela foi recebida pelos adversários dos formalistas nestes termos cruéis: quem não reconhece o processo do sujeito pode terminar como o sujeito de um processo. Se os processos do sujeito não desdouram minimamente essa intelectualidade que, jogando com signos, fez uma revolução de 360 graus na história das idéias, o fato é que tornam particularmente comovente uma espécie de retrato de grupo da nata da plataforma, feita a crayon por Roland Barthes, já em sua fase heterodoxa. Trata-se, muito provavelmente, do único documento a registrar, um ao lado do outro, as figuras de Barthes, Lévi-Strauss, Lacan e Michel Foucault. Relativamente conhecido dos estudiosos, esse inesperado portrait geracional é incluído, em 1975, entre as muitas fotografias familiares e confidências que o semiólogo-desenhista inseriu em seu Roland Barthes por Roland Barthes. Nessa charge, todo o quartel-general do estruturalismo foi posto numa roda, para conversar. Despidas de sua urbanidade acadêmica e de suas insígnias professorais, todas as personagens estão sentadas, de pernas cruzadas, como se fossem índios, e trajando tanga. Logo abaixo da imagem, uma legenda explica: "a moda estruturalista". De fato, nada melhor para ilustrar a estrutura que as duas oposições máximas com que o desenhista brinca, e que sempre atraíram Lévi-Strauss: o nu e o vestido, o primitivo e o civilizado. Duas coisas nos tocam nessa brincadeira de Barthes, que é também uma espécie de vôo metalingüístico de alguém da tribo sobre a própria tribo. A primeira é que, não muito tempo depois da saída do livro em que o desenho aparece, quase todos os retratados já estariam mortos, de forma precoce, quando não violenta, ou estariam perdidos em suas iluminações alquímicas, como dirá de Lacan sua biógrafa, Elisabeth Roudinesco. Todos menos um: o mais longevo, este que chega agora aos 100 anos. A segunda coisa tocante é que, embora se saiba que Barthes, irrequieto como era, é o primeiro dos pós-estruturalistas, não se trata de moda. Nem é possível pensar que o autor de Sur Racine não tenha levado a sério a proposta de mudar a crítica literária com os aportes das lingüísticas, das semióticas e das semiologias. Já que ele responde, nessa frente, por uma virada célebre, a troca dos enquadramentos sócio-históricos das obras pela leitura de suas molas discursivas, ou de uma crítica ideológica por uma crítica interpretativa, para lembrar suas palavras mesmas. É bem isso que abespinha os donos de Racine reunidos na Sorbonne, o fato de que o novo crítico ousa lançar, de sua École des Hautes Études, uma interpretação do maior trágico francês do período clássico que desconsidera o século do autor, e nesse sentido qualquer dimensão cronológica, para visar, também no melhor estilo antropológico, não o tempo, o operador da História, mas o espaço, o operador de Lévi-Strauss. Que é o que faz, escandalosamente, Sur Racine, onde se investiga o locus racinianus e se atrela a contradição trágica à tensão entre os lugares de que falam as personagens: a câmara, a antecâmara, o palácio real, o exterior do palácio, o dentro e o fora. Trata-se, isto sim, de uma poderosa corrente de força que, em plena vigência da autoridade de Marx, Freud e Sartre, vai interceptar as filosofias da história e do sujeito, permitindo-se ficar fora destas referências, e dentro de uma paixão pela linguagem jamais vista, antes, longe dos laboratórios das artes. O que explica, de resto, que - Lévi-Strauss à frente -, todos os estruturalistas tenham se interessado tanto por artes - e que a escola das estruturas seja, ainda por cima, um poderoso ateliê de críticos de arte. Além de ser um dos mais importantes pensadores do século passado, este que agora homenageamos é também um perfeito comentador de Proust e dos pintores cubistas, em seu Olhar, Escutar, Ler. E um intérprete inaudito de Baudelaire, que pega o poeta pela palavra, em sua célebre análise do poema Les Chats, feita a duas mãos com o lingüista Roman Jakobson. Aí, sem temer tratar o texto baudelairiano como um objeto, ambos realizam uma exemplar escanção morfossintática - que tipo de verbos? que substantivos? que conectores? - e é dessa peritagem que sai, no final, a revelação do sentido profundo. Desde 1962, quando esse modelo de leitura poética chegou aos departamentos de Letras de todo o mundo, nunca mais a análise de texto foi a mesma, nunca mais ousamos atribuir qualquer significação a qualquer peça literária, mesmo em prosa, sem antes tomar o cuidado de verificar com quê materiais era feita. É bem verdade que, a partir de determinado momento, mais para o final do século, também aprendemos a suspeitar de que a escola das estruturas impunha uma estabilização do sentido - e encerrava assim uma última armadilha dogmática, a ser desconstruída. Nem por isso esqueceremos que os estruturalistas nos ensinaram a ler o grande livro do mundo! Que bom que os signos ainda têm Lévi-Strauss! Leda Tenório da Motta é professora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP

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