''Intérprete da condição humana''

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Por Redação
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É difícil falar em Meu Machado tratando-se de um escritor de obra tão vasta, tão variada e tão surpreendente. Meus Machados é melhor. No meu caso, incluem Dom Casmurro, claro, e também contos (Uns Braços, Missa do Galo) e crônicas. Mas há um texto, às vezes classificado como conto, às vezes como novela, que sempre me fascinou - como leitor, como médico, como escritor. Trata-se de O Alienista, publicado originalmente - sob a então habitual forma de folhetim, isto é, em capítulos - no jornal A Estação, entre outubro de 1881 e março de 1882. A época é importante. Coincide com a revolução científica que se operou na medicina, em fins do século 19 e começos do século 20. O auge deste movimento é representado pela revolução pasteuriana, que permitiu identificar os micróbios causadores de muitas doenças, facilitando sua prevenção e tratamento. Mas não só a microbiologia, como também outras especialidades ganharam foros de ciência, incluindo a psiquiatria, e este é o ponto de partida para a narrativa, que ocorre em "tempos remotos" e difíceis de caracterizar. Há uma menção ao vice-rei, o que evoca o Brasil colônia, mas também alusões indiretas às revoltas no Brasil do século 19. A imprecisão provavelmente é proposital. Machado por certo procurava evitar polêmicas com seus contemporâneos, inclusive e principalmente os alienistas, denominação dada aos psiquiatras da época, que tratavam os "alienados". A ascensão da psiquiatria representava uma importante mudança científica e social. Na Idade Média o conceito de loucura era impreciso. A pessoa que ouvia vozes estava sofrendo de um distúrbio mental ou tinha de fato um canal de comunicação com as altas esferas? O monge que se fechava em sua cela no mosteiro estava deprimido, ou vivia um transe religioso? Por outro lado, o "louquinho da aldeia" era uma figura tolerada e até simpática. Mas a modernidade muda tudo isso, porque o maluco era alguém que não trabalhava, que dava mau exemplo, e que precisava, portanto, ser isolado. Daí a proliferação dos hospícios, "o grande internamento", para usar a expressão de Michel Foucault. Daí a expansão de uma psiquiatria que, sem meios para tratar as enfermidades, tratava de classificá-las minuciosamente, como o fez Jean-Etienne Esquirol em meados do século 19. Esquirol era um entusiasta do internamento, que teria vários méritos: protegeria o doente mental (inclusive de si próprio), daria "novos rumos" ao seu raciocínio e a seu modo de vida. Estava inaugurada uma tendência que se refletiria no Brasil: em nosso país os grandes hospícios começaram a surgir exatamente na época de Machado. O Alienista tem como cenário a modorrenta cidadezinha de Itaguaí. Ali chega o Dr. Simão Bacamarte, que vinha de estudos em Coimbra e Pádua (onde houve, de fato, uma famosa escola de medicina). Decidido a dedicar-se à "saúde da alma", Simão Bacamarte funda um asilo de alienados, a Casa Verde, que logo recebe vários hóspedes. Bem dentro do espírito da psiquiatria de então, Bacamarte dedica-se a classificar as doenças de que são portadores: monomanias, delírios, alucinações, mas com um objetivo nada modesto: "descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal". Aos poucos, o alienista constata que o problema é muito maior do que pensava: "A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente." A insânia deve ser combatida: o menor desvio da suposta normalidade é pretexto para uma internação. O alienista detém agora o poder em Itaguaí, o que gera uma revolta, a Revolta dos Canjicas, liderada pelo barbeiro Porfírio. Os dragões encarregados de reprimir o movimento aderem a Porfírio. Ao receber a notícia, Bacamarte, imerso na leitura de um texto de Averróis, célebre médico da Antiguidade, não se abala. Aos rebeldes, declara: "Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus". Os chefes da rebelião discordam sobre a atitude a tomar em relação a Bacamarte; Porfírio quer unir-se a ele - afinal o médico tem poder, o poder que lhe dá a Ciência. Uma força enviada pelo vice-rei acaba com o debate - e com a rebelião. O poder do alienista chega ao máximo: interna dezenas de pessoas, inclusive a própria esposa. E então algo lhe ocorre: se a loucura é tão disseminada, o hospício deveria ser reservado não para os enfermos, mas para os sãos; no caso, ele próprio. Tranca-se na Casa Verde, agora vazia, entregando-se ao "estudo e à cura de si mesmo", vindo a morrer. O Alienista é uma obra extraordinária. Diferente dos clássicos habituais, é extremamente legível, mesmo que tenha sido publicada há mais de um século. O estilo de Machado é simples, direto, e impregnado de um humor corrosivo que faz a delícia do leitor. Em segundo lugar, trata-se de uma devastadora crítica ao poder. Ao poder médico da época, naturalmente, ao poder do político, mas ao poder em geral. Num caso é poder escudado pela ciência; no outro, pela legislação, pelos costumes. Durante muito tempo Machado foi classificado (ao contrário de Lima Barreto) como um conformista, como um membro do estabelecimento. O Alienista mostra que este julgamento está errado. Estamos diante de um grande intérprete do Brasil e da condição humana.

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