Instinto de arte

Sinopse

PUBLICIDADE

Por Daniel Piza e E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br
Atualização:

Sempre ouvimos que a beleza é subjetiva, que muda de acordo com o tempo, o lugar e o observador. "Ah, na Renascença os homens gostavam de gordinhas", fala-se, em contraponto à magreza valorizada hoje em dia. Também se diz que a beleza é relativa, comparativa, porque um prédio pode parecer bonito até que outro mais bonito ainda surja ao lado. E que a beleza é uma qualidade decorativa, um atributo de superfície, um dado da anatomia; mulheres em especial gostam de dizer que não fazem questão de homem bonito, que é melhor que ele seja charmoso, interessante, divertido, etc. "Gosto não se discute", eis a palavra final, quando já existe a certeza de que o outro discorda. Mas esses lugares-comuns não explicam fenômenos que podemos ver a todo instante, ainda mais num mundo de distâncias reduzidas como o atual. Não me esqueço da cerimônia de abertura da Olimpíada de Pequim que vi num grande telão em uma avenida que estava lotada de chineses e turistas. Como cada delegação era aplaudida pelos compatriotas, pudemos ver que havia gente do mundo todo. De vez em quando, a câmera dava closes em atletas mundialmente famosos ou nem tanto. E quando eram bonitos - eles ou elas - havia um "oooh" generalizado. Combinações harmônicas de volumes proporcionais, traços nítidos e cores viçosas transcendiam características locais e tinham apelo universal. Por esse motivo, estudiosos de diversas disciplinas tentam há muito tempo definir o que é beleza, encontrar uma espécie de lei que a determine. É o que fazem de novo dois livros recém-publicados em inglês, The Art Instinct, de Denis Dutton, e Beauty, de Roger Scruton. Dutton, editor do ótimo portal Arts & Letters (www.aldaily.com), tenta entender o prazer da beleza à luz da evolução de Darwin. Ele mostra como o design cerebral favorece equilíbrio e movimento e se deixa seduzir por simulações que lhe pareçam informativas e estimulantes, pois somos seres contemplativos: aprendemos pela imitação. Scruton, grande crítico conservador, autor do estudo sobre modernismo The Banquet Years, procura associá-la à racionalidade humana. Queremos partilhar uma experiência alheia de um modo que é ao mesmo tempo ordenado e peculiar e, por isso, nos leva ao exame e autoexame crítico. Muito do que ambos dizem me parece correto, mas também limitado. Sim, é verdade que há exemplos de beleza humana e artística que ultrapassam gerações, e o simples fato de que resistiram a tantas mudanças de valores é uma prova de que o subjetivismo e o relativismo não bastam. Mas não vamos muito longe se desprezarmos o enorme espectro de estilos que podem conter beleza; ou seja, ela parte de noções como proporcionalidade ou vitalidade, e não chega a elas. O Parthenon ou a Notre-Dame são simétricos, mas os ritmos, espaços e detalhes dão outro grau de expressividade à sua forma geral. Beleza, nem mesmo no rosto humano ou nas artes funcionais, não é o mesmo que perfeição métrica. Mais importante: arte não se faz só com beleza. Umberto Eco foi feliz em fazer um livro chamado História da Beleza e depois outro História da Feiura. Mulheres pintadas por Picasso com dois olhos do mesmo lado e soltando gases foram e são consideradas feias, mas a linguagem do artista é de uma tal riqueza em si, inclusive ao recorrer a combinações cromáticas e linhas marcantes, que vemos beleza ali. A história da arte está repleta de usos do "mau gosto" para explorar composições inovadoras. Dutton fala em "complexidade" e "seriedade" como virtudes da grande arte, mas novamente são termos enganosos: não há uma simplicidade melódica em Mozart que nos cativa antes de mais nada e não há uma infinidade de obras iconoclastas ou despretensiosas como uma cena de Charlie Chaplin? Podemos ter um instinto de beleza que nos diz, por exemplo, que a estátua de Borba Gato na Avenida Santo Amaro é um horror - proporções grotescas, execução tosca, rigidez involuntária -, o que não impede que alguém diga que a acha bonita ou interessante (cada louco com sua mania, etc). No entanto, é mais fácil estabelecer critérios objetivos para dizer o que não é bonito do que o que é. Como a beleza precisa sempre trazer o tom da surpresa, como quando se vê alguém bonito entrar numa sala ou quando reentramos em Chartres, ela não pode ser reduzida a uma fórmula, biológica ou idealista. É justamente por isso que podemos nos situar no contexto da época para ver como aquela nova modalidade de prazer estético surgiu. Se beleza pudesse ser facilmente encontrada, não a procuraríamos tanto. Procurar é belo. A ARTE DE EXPOR (1) Realismo é outra dessas palavras complicadas, que de tão usadas perdem seu sentido. Andando pela mostra O Realismo, cheia de obras-primas francesas do Masp, D?Orsay e da Coleção Berardo de Lisboa, além de alguns paralelos brasileiros, verificamos isso mais uma vez. O termo designa obras que se aproximam da realidade exterior tal como é, que tentam retratá-la de um modo mais fotográfico ou então com alguma intenção de observação social. É o que temos, por exemplo, nas paisagens de Corot, nos retratos de Courbet ou na Família Dubourg, de Fantin-Latour. Mas nenhum artista é 100% realista, nenhum jamais pretendeu captar imagem como uma câmera - mesmo antes de existirem câmeras! Ou você acha mesmo que a Mulher Nua com Cão não foi uma cena montada e adaptada por Courbet? Nem mesmo uma fotografia é neutramente objetiva. E, claro, existem muitos realismos. Os impressionistas foram acusados de contrariar a noção de arte (e do belo) como registro perfeccionista da realidade, mas seu gesto era realista não só na aproximação às cenas corriqueiras em vez das míticas ou históricas, mas sobretudo na tentativa de captar a natureza fragmentária e cambiante da luz. Acontece, porém, que a mostra se expande para exemplos de Van Gogh, Picasso e até surrealismo e abstracionismo, como se qualquer vestígio de representação literal significasse realismo. Seja como for, realistas ou não, há diversas pinturas belas e inéditas para ver no Masp, como as de Rousseau, Soutine e Balthus. A ARTE DE EXPOR (2) Também parte do Ano da França no Brasil, vi a exposição de Léger na Pinacoteca. Não tem muitos exemplos de sua melhor fase, embora o paralelo com Tarsila seja importante para reduzir um pouco as aclamações locais à originalidade dela. O destaque são as ilustrações que Léger fez para livros de poesia, onde solta seu gosto pela linguagem gráfica, que nas pinturas muitas vezes se amarra numa composição quase clássica em sua necessidade de preencher o espaço com a geometria de formas industriais. O curioso é que Tarsila leva isso para paisagens bucólicas, como se fossem pôsteres graciosos. Vejo conservadores - que detestam qualquer exemplar de arte abstrata e conceitual - exaltando Vik Muniz até por contraste, já que suas obras lidam com figuras tradicionais em tratamento pop. Esse tratamento inclui alimentos como chocolate e parece se basear no velho discurso sobre a questão do consumo que vira ele mesmo, discurso, um objeto de consumo... Mas ninguém vai ver Daniel Senise na Estação Pinacoteca. Sim, são pinturas austeras demais, que muitas vezes não ultrapassam o jogo visual da profundidade. Em alguns momentos, porém, ele cria forte sensação de estranhamento, com deslocamentos de perspectiva que lembram os vazios de De Chirico e camadas de textura que remetem à melancolia de Kiefer. Nem sempre a boa arte tem alcance universal. O MUNDO É UM PALCO A montagem de Gabriel Villela para Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, extrai mais força dessa velha técnica, a representação, do que de todos os balangandãs que ele pendura no cenário e nos atores (como os chapéus e plásticos à la Herchcovitch), especialmente as músicas que são cantadas a cada cinco minutos. Leandra Leal é essencialmente rodriguiana em sua mistura de drama e humor; Luciana Carnieli dá todas as pitadas de malícia necessárias; Maria do Carmo Soares arranca o maior número de risadas. Mas a opção clownesca para o personagem de Marcello Anthony e a exigência de muitos recursos de Vera Zimmerman destoam. O problema não é desdramatizar Nelson, ou fugir do estilo expressionista rigoroso que consagrou a montagem de Ziembinski; é não conseguir encaixar no espírito da obra as ênfases que foram escolhidas. POR QUE NÃO ME UFANO Uma "reforma" política proposta, sem emenda constitucional nem debate amplo, por um parlamentar com o currículo de Ibsen Pinheiro, que alega que a corrupção "é da natureza humana" (e a impunidade, também?), vai dar tão certo quanto a MP da poupança, confusa e suicida, que não combate o problema central que é a distância entre o cidadão comum e o sistema financeiro. Aforismos sem juízo Mestiçagem não é garantia de nada, como a suposta pureza nunca foi. Não existem raças, mas indivíduos. ''Beleza não é o mesmo que perfeição métrica. Mais importante: arte não se faz só com beleza'' ''Nenhum artista é 100% realista, nenhum jamais pretendeu captar imagem como uma câmera''

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.