''Incorrigíveis'' inimigos querem Borges de volta

Políticos peronistas planejam trazer corpo do autor morto há 23 anos e enterrado em Genebra para mausoléu em Buenos Aires

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Por Ariel Palacios e BUENOS AIRES
Atualização:

"Os peronistas são são bons, nem ruins... são incorrigíveis." A frase é do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), que tinha com os seguidores do general e presidente Juan Domingo Perón uma relação de elevada tensão. Em 1946, para humilhá-lo - e tentar calar sua refinada ironia com o novo governo - os peronistas removeram Borges de seu posto de diretor de biblioteca e o designaram "inspetor de galinhas e ovos" em feiras públicas. Nos anos seguintes, o peronismo colocou sua irmã e mãe na cadeia. Mas, décadas após esses eventos, 23 anos após a morte de Borges e perto do 110º aniversário do nascimento do autor de O Aleph e História Universal da Infâmia, parlamentares peronistas pretendem trazer o corpo do escritor - enterrado em Genebra - para um funeral em Buenos Aires. O projeto da deputada María Beatriz Lenz, aliada da peronista presidente Cristina Kirchner, está causando intensa polêmica no âmbito acadêmico. O projeto de lei conta com o respaldo da Sociedade Argentina de Escritores (Sade), presidida por Alejandro Vaccaro, biógrafo de Borges e um dos principais colecionadores de documentos pessoais do escritor. "Borges é um ícone dos argentinos. Trazer o corpo de Borges é algo que devemos fazer pelos argentinos e também pelo próprio Borges", afirma Vaccaro. Ele argumenta que o desejo do escritor era ser enterrado na Recoleta, no mausoléu de sua família. Para isso, os defensores de um funeral portenho para o escritor citam poemas borgianos como A Recoleta, no qual dizia: "O anterior, escutado, lido, meditado, o realizei na Recoleta, ao lado do próprio lugar onde hão de me enterrar." Mas outros acadêmicos - do lado da ex-aluna e posteriormente viúva de Borges, Maria Kodama-Borges - defendem a permanência do corpo em Genebra, onde repousa no cemitério de Plainpalais, perto do túmulo de Erasmo de Rotterdam e do líder presbiteriano João Calvino. No entanto, Borges nunca escreveu uma linha que ratificasse o hipotético desejo de ser ali enterrado, supostamente emitido pouco antes de morrer, e que foi anunciado como verdadeiro por Kodama. Os inimigos de Kodama ressaltam que se o corpo de seu marido vier para Buenos Aires, será enterrado no mausoléu familiar, atualmente controlado pelos sobrinhos do escritor. Estes possuem um velho conflito com a viúva por causa da herança de Borges e os direitos sobre sua obra. Além de Kodama, para trazer Borges ao país, a iniciativa dos peronistas terá de enfrentar as autoridades suíças, que não pretendem abrir mão de um dos cadáveres mais famosos que suas terras hospedam. Por trás de um novo funeral, afirmam os analistas em Buenos Aires, está o prestígio cultural, além de uma imensa e milionária indústria de merchandising, já que Borges é uma figura "pop", presente em camisetas e pôsteres. Os peronistas podem ser "incorrigíveis", como dizia Borges. Mas, como afirmava Perón, acima de tudo são "pragmáticos". MAFALDA A polêmica atinge até mesmo a lápide de Borges em Plainpalais, que ostenta uma parafernália de símbolos, tal como uma nave viking, guerreiros com lanças, uma cruz de Gales, seu nome completo, além de uma legenda em anglo-saxão,"And ne forhtedon na" ("E não deverias temer"). Segundo sua amiga e colaboradora Maria Ester Vázquez disse ao Estado, "isso é uma fútil recomendação para alguém como Borges querer colocar na lápide. Seu desejo, expresso em seus versos era: ?Só peço as duas abstratas datas e o esquecimento?, e não foi levado em conta. É uma lápide curiosa e complicada. No meio de todas aquelas coisas, a única coisa que falta ali... é uma frase da Mafalda!"

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