Humor e ternura na vida de uma família comum

Mãe É Karma! foi escrita por Elias Andreato em 2005 a pedido de Paulo Autran, que não teve tempo de encená-la

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Por Ubiratan Brasil
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Paulo Autran buscava uma peça sobre velhice, especialmente alguma que tratasse com bom humor esse delicado momento da existência, e pediu auxílio para o amigo e também diretor e ator Elias Andreato. Era 2005 e, depois de uma pesquisa que resultou infrutífera, Andreato sugeriu encomendar um texto a Arnaldo Jabor. O cronista do Estado, no entanto, justificou-se muito atarefado. "Resolvi, então, rascunhar um texto que foi aprovado pelo Paulo", conta Andreato, autor de Mãe É Karma!, que estreia hoje para convidados no Teatro Vivo. Com a morte de Autran, em outubro de 2007, Andreato deixou o texto na gaveta até ser reanimado pelo ator Cláudio Fontana que, na condição de produtor, conseguiu patrocínio para a atual montagem. "Considero um espetáculo simples e direto, que conquista a cumplicidade do espectador por meio do humor e de uma crítica social", observa Andreato, também diretor da peça. De fato, Mãe É Karma! é uma comédia que não busca apenas o riso, mas também incentiva a plateia a refletir. Conta a história de uma típica família de classe média que, naquele momento, sofre com uma tragédia: a tentativa de suicídio do patriarca, Raul (Renato Borghi). "Eu quis pular fora do barco antes do tempo", justifica ele ao filho, Manu (Nilton Bicudo), com quem mantém um tumultuado relacionamento - Raul tem dificuldade para aceitar o homossexualidade do filho. O contraponto ao pesado fardo carregado pela ala masculina da família está na figura da mãe, Dora (Miriam Mehler), mulher extremamente bem-humorada, capaz de chocar com seus comentários irônicos e deslavados, mas eficientes em manter o grupo em alto-astral. E também na presença da empregada Cida (Olívia Araújo), moça também extrovertida que, graças ao longo período na casa, já é considerada membro da família. "Eles vivem aquelas tragédias corriqueiras, que podem afetar qualquer um", conta Míriam Mehler, que se diverte em cena com as impropriedades ditas por Dora. "Ela é um tipo de mulher que encara os problemas, sempre com humor, gostando mesmo quando as pessoas ficam chocadas." A mãe forte é, de fato, uma fortaleza na família. "É ela quem esquenta a relação, especialmente após a fraqueza do pai", argumenta Borghi, lembrando ainda a bela cena em que Raul conversa com Manu sobre sua preferência sexual. "Ele é um pai que, como muitos, prefere não enfrentar os problemas, fazendo-se de surdo ou distraído." É tal semelhança com o cotidiano que Andreato buscou retratar em Mãe É Karma!. E teve sucesso, a julgar pela avaliação de Paulo Autran, que examinou o texto quando ambos viajavam de avião para o Rio de Janeiro. "Ele o leu de uma só vez, sem manifestar sequer uma reação", lembra-se Andreato. "Eu só conseguia ouvir sua respiração ofegante e seu braço roçando no meu cada vez que virava uma página. Ao final, ele fechou o texto, guardou-o em sua pequena bolsa de viagem, olhou para mim e disse: ?Você observa tudo, não perde nada! O papel da mãe é ótimo!?." O texto, na verdade, era familiar ao grande ator, homenageado em muitos aspectos no papel de Raul. "Meu personagem é um advogado que gostaria de ter sido ator e não conseguiu, daí ficar recitando Shakespeare para a mulher e de encenar um trecho de Hamlet com a Cida", explica Andreato. "Paulo, ao contrário, formou-se advogado, da mesma forma que Renato Borghi. Mas eles praticamente não exerceram a profissão, preferindo a carreira artística." Outra semelhança, perceptível principalmente para quem acompanhou mais intimamente a carreira de Paulo Autran, está no papel da mãe: Dora traz muito dos traços de Karin Rodrigues, atriz que se tornou companheira oficial de Autran em seus últimos anos de vida. Ambas têm o humor ferino como arma principal. Antes de estrear hoje, o texto de Mãe É Karma! foi homenageado em uma leitura no Masp, em 2006, com Autran lendo as falas do pai. Karin Rodrigues ficou com as da mãe, enquanto Claudio Fontana leu as do filho Manu e Claudia Missura fez a empregada Cida. A direção foi de Nilton Bicudo. E a boa recepção do público despertou em Fontana a vontade de produzir o espetáculo. Apesar de tratar de temas pesados (Cida, por exemplo, é vítima de um acidente que não convém revelar), a peça oferece o conforto do humor, bem recebido pelo público, como comprovaram as apresentações que o grupo fez em Mauá e Santo André antes da estreia. E também de um ensaio-geral para alunos de teatro, o qual o Estado acompanhou na noite de quarta-feira. "Eu estava receoso porque a história trata basicamente de problemas da velhice, o que aparentemente não interessa à juventude", disse Andreato, aliviado com a ovação recebida pelo elenco, terminada a apresentação. "Há um entendimento da plateia de que acompanhar o envelhecimento dos pais é um fato da vida, daí o texto estar repleto de existencialismos contundentes." Realmente, inspirado em Shakespeare e Chekhov, que marcam sua sólida carreira, Andreato compôs o terno retrato de uma família comum. Serviço Mãe É Karma! 90 min. 14 anos. Teatro Vivo (290 lug.). Avenida Dr. Chucri Zaidan, 860, Morumbi, 7420-1520. 6.ª, 21h30; sáb., 21 h; dom., 19 h. R$ 50 e R$ 60 (sáb.). Até 4/10. Estreia hoje ATORES VOLTAM A VIVER UM CASAL DEPOIS DE 45 ANOS OFICINA: Miriam Mehler e Renato Borghi voltam a interpretar um casal depois de 45 anos - entre 1964 e 65, eles dividiram o palco em Andorra, peça do suíço Max Frisch (1911-1991), considerada uma parábola sobre o antissemitismo e a intolerância. "Formávamos um casal de namorados e, desde então, desenvolvemos um carinho muito grande", conta Miriam. "Quando eu beijo e abraço o Borghi em cena, pode acreditar que é um sentimento verdadeiro." Na época, eles atuavam no Teatro Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa. "Mas trabalhamos juntos em outras peças, como Pequenos Burgueses, em 1963", completa Borghi. E agora o casal festeja também o mesmo tempo de carreira, 51 anos.

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