Hora do recreio

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Por Adriana Falcão
Atualização:

As meninas se aproximaram de mim, em grupo. Ostentavam um jeito decidido que me deixou meio insegura. - Vamos parar de falar com a Patrícia? - Por quê? - Porque ela tem cabelo curto. Não entendi bem a lógica. Eu devia ter por volta dos 8 anos. Tinha cabelo comprido. Estava sozinha e pensativa, no pátio da escola, como ficava algumas vezes. Não era uma menina retraída demais, também não era a rainha da popularidade, não me sentia rejeitada, mas não tinha muitas amigas. A Patrícia era uma das poucas. Ela era uma menina - de cabelo curto - gentil, bacana, com cílios lindos, longos e escuros. Voltava para casa no mesmo ônibus escolar que me trazia. Nessas ocasiões, sentadas lá no último banco, trocávamos algumas confidências, fazíamos alguma bagunça, nos entendíamos. Ela descia antes de mim. O resto do trajeto até minha casa, depois que a Patrícia já tinha descido, era mais chato e mais comprido. Eu não podia parar de falar com ela de repente. Nem porque ela tinha cabelo curto, nem por qualquer outra razão mais ou menos importante do que essa. Eu gostava da Patrícia, apesar ou inclusive por causa do seu cabelo curto. Mas tinha medo de dizer isso para as outras meninas. Por isso, quando elas se aproximaram, "Vamos parar de falar com a Patrícia?", "Por quê?", "Porque ela tem cabelo curto", eu respondi, "vamos". O Anjinho e o Diabinho logo se manifestaram. Não sei bem qual é um e qual é outro. - Medrosa. Covarde. Traidora. Vai parar de falar com a sua amiga só porque não tem coragem de dizer "não" para as outras todas? - Mas se você disser "não" para as outras todas, elas vão parar de falar com você também. Sua única amiga vai ser a Patrícia e ela nem é tão sua amiga assim. - Se elas pararem de falar com você só porque você decidiu ser coerente com o que pensa, será um motivo tão idiota quanto parar de falar com a Patrícia só porque ele tem cabelo curto. Portanto, azar o delas. - Azar o seu que vai virar uma excluída, igualzinha à Patrícia. E, além do mais, quem é você para dar lição de moral? Você não acha coerente parar de falar com a Patrícia porque ela tem cabelo curto, mas acha coerente implicar com o Carlos só porque ele usa aquelas botas ortopédicas? - Uma coisa é implicar interiormente com alguém, outra é demonstrar sua intolerância, pior ainda, fazer mal a uma criatura só porque ela tem não sei o que não sei como. - É tudo a mesma coisa. Preconceito. Julgamento. Intransigência. Você é cheia disso. Não gosta do Sérgio porque ele sua muito. Despreza a Mônica porque ela é repetente. Não tolera a Teresa Cristina desde que ela vomitou dentro da sala de aula... Eu não sabia mais o que pensar nem o que fazer, mas precisava tomar uma decisão até a hora da saída, quando fatalmente ia me deparar com a Patrícia. Depois de muita agonia, me decidi. No trajeto para casa, lá no banco de trás do ônibus escolar, disse para a Patrícia que as meninas tinham me pedido para parar de falar com ela e que eu ia fingir que tinha parado, mas ia continuar falando escondido. Ela me agradeceu sinceramente. Assim que ela desceu, o Anjinho e o Diabinho apareceram. - Você é a pior pessoa que existe. Fez uma grande fofoca e conseguiu se dar bem com todo mundo, se valendo da ingenuidade da Patrícia. E a coitadinha ainda agradeceu a sua pretensa bondade, que na verdade esconde sua grande covardia. Você posou de boazinha, mas sabe muito bem que é má, sem ética, desleal, falsa e sem caráter. - Foi mal - concluiu o Anjinho. Ou o Diabinho? Obviamente, logo chegou aos ouvidos das meninas que eu falava com a Patrícia quando elas não estavam por perto. E elas pararam de falar comigo. E ainda conseguiram o apoio da Patrícia. Sozinha, no pátio da escola, eu tinha de conviver com a minha crueldade. Mal sabia eu que aquilo era só a hora do recreio. Depois ainda vinha a vida.

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