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Homo duplex

Por Daniel Piza
Atualização:

A ancestral tensão entre lar e aventura, entre ficar e partir, ocorre em todas as culturas, independentemente de gênero, idade e posse. Todos temos uma parte do ser que anseia pelo movimento, pela novidade, pela quebra da rotina. É o que o grande escritor Joseph Conrad quis dizer quando se definiu como um "homo duplex", um homem duplicado, dividido entre estabilidade e descoberta. Ele viajou muito dos 18 aos 38 anos, como membro da marinha britânica; então parou, casou e começou a escrever seus romances, entre eles obras-primas como O Coração das Trevas, Nostromo e Lorde Jim, todos com protagonistas lançados em dilemas agudos entre sua identidade e sua missão, entre sobrevivência e compromisso. Seus personagens são dostoievskianos sob o céu de Turner: homens cujo conflito interior é aprofundado pelo embate com a natureza. Não é preciso percorrer os sete mares para sentir tal conflito. Dorival Caymmi, que dizem que nem sabia nadar, cantou esse drama em canções como O Bem do Mar: "O pescador tem dois amor,/ Um bem da terra, um bem do mar./ O bem de terra é aquela que fica à beira da praia./ O bem do mar é o mar, é o mar, é o mar." Guimarães Rosa falou disso nesse mar invertido que é o sertão, e histórias como A Terceira Margem do Rio tratam justamente da dúvida entre seguir o pai, herdando a responsabilidade da casa, e ir embora, atrás de outras oportunidades. Mesmo nos escritores mais urbanóides e intimistas, como Machado de Assis ou Kafka, há nos seres uma dor latente quanto às formas de trocar a monotonia pelo êxtase, a paralisia pelo sublime - e, justamente porque postas com tal antagonismo, condenadas ao fracasso. Por mais que a repetição dos hábitos, como a previsão de que o sol vai nascer a leste, nos dê sensação de segurança, de conforto e controle, não há indivíduo que não se canse da mesmice e não sonhe viver experiências que abram horizontes ainda que chuvosos. É claro que há a glamourização da aventura, hoje em dia explorada pela indústria do turismo; é como se a adrenalina da situação-limite fosse mais significativa ou transcendente. Bem, se viajar fosse obrigatoriamente enriquecedor, os caixeiros-viajantes escreveriam como Proust... A textura da vivência não é composta disso; lugares nos modificam, mas não nos transportam além da nossa voz interior e seu corpo de carne. O problema formulado por Pascal, sobre a incapacidade do homem de ficar em paz num quarto, persiste. Aventuras podem implicar incômodos e até desastres que costumam surpreender especialmente os mais românticos, aqueles que deixam a prudência e o equilíbrio de lado. No livro de Roland Huntford, O Último Lugar da Terra, isso fica muito claro na comparação entre as expedições do escocês Scott e do norueguês Amundsen. Este soube usar o conhecimento que tinha - como lidar com os trenós de cães - e moderar o orgulho, inclusive ao se cercar dos melhores homens, para atingir o Pólo Sul, numa busca que tinha frustrado o lendário Shackleton. Novamente, estou falando de aventureiros por vocação e profissão. Nós temos questões parecidas, mas em outro grau de urgência e intensidade. Como combinar a vida necessária, a vida de trabalho, família e lar, com a abertura a experiências diferentes, cujo mero deslocamento já é um convite ao auto-exame, ao balanço de metas e medos? Cada um responde por si. Eu sempre senti enorme necessidade (uso o termo de propósito) de romper a cadeia dos dias, de "sentir o vento do mundo no rosto", de conhecer outros lugares e pessoas e sensações. Quando era criança, passava horas do meu dia debruçado sobre o Atlas da Mirador, desenhando mapas, imaginando os lugares aonde iria, ao lado de livros de história da arte. Dos meus 13 aos 23 anos, por falta de dinheiro e apoio, não pude fazer nenhuma viagem ao exterior; viajei por todos os cantos do Brasil (hoje conheço todos os Estados da federação), mas queria muito ir aos outros mundos. Fiz isso, em parte, por meio dos livros, relacionando as obras de cada cultura e lendo vorazmente. Durante um período, por influência das leituras de Darwin a Cousteau, pensei em estudar biologia marinha. A partir dos 24, todo dinheiro que juntei foi para sair pelo mundo, fazendo duas ou três ou mais viagens por ano. Cada dólar valeu. É muito mais rentável do que juntar patrimônio. Sim, sempre é tempo de ampliar seu mundo por leituras e viagens. Sim, viajar com maturidade e mais recursos é, ao contrário do que muita gente pensa, melhor do que os espasmos juvenis que, claro, também têm sua utilidade libertária. Mas não vejo sentido em adiar esse aspecto tão importante da biografia para quando um dia, se possível, etc... Em nome de filhos e empregos, muitas pessoas abandonam e até se esquecem dos sonhos de aventura - mas eles não se esquecem delas. Por que será que todo menino sonha, como sonhei, em ser jogador de futebol, astronauta, oceanógrafo? Não é apenas uma "fase", um subproduto hormonal; é um desejo fundamental. Mas a maioridade vem e a grande maioria está atada a empregos chatos, casamentos chatos, contas a pagar, filhos a criar. E o máximo que se permitem é ir até algum destino da moda e fazer o circuito cartão-postal. Sempre existem alternativas, amigo. Há muito mais profissões do que um adolescente pode saber. O dinheiro, no caso da classe média, não serve apenas para consumo de grifes ou carros importados. Não abandone seus projetos de viagens ou até mudanças de carreira. Quanto antes, melhor; só não me venha com "já era" e "não tem mais jeito". O fatalismo é o último refúgio dos conservadores. O pior resultado disso não é nem a ignorância de outras culturas e naturezas ("Para quê? A natureza do Brasil é a mais bonita do planeta"); é a atrofia de sua percepção, a hiperespecialização de seus valores e saberes. Ter um emprego fixo aonde se vai todo dia, ser casado, ter filhos e desfrutar apenas de um mês de férias são realidades positivas, incontornáveis, para quase todos nós. Torná-las interessantes, muito prazerosas, é o maior desafio. E, para isso, criar veredas no cerrado rotineiro representa boa parte do caminho. Sair do cotidiano pode ser uma chance de renovar o prazer do próprio cotidiano, ainda que num primeiro momento haja o choque, a decepção com sua vidinha. Cada um deve encontrar, portanto, sua dosagem de variação. Eu, por exemplo, preciso daquelas duas ou três quebras anuais, de pelo menos uma semana cada - acompanhado ou não. Tenho a sorte de ter encontrado no jornalismo essa oportunidade de combinar a vocação de escrever e o prazer de viajar. Por sinal, escrevo da Antártica, aonde vim para conhecer a estação brasileira, numa viagem de navio de três dias partindo de Ushuaia, na Patagônia argentina. Aqui vejo como marinheiros sofrem, em contraste com a imagem juvenil a seu respeito: vivem em compartimentos apertados, num balanço constante, que na travessia do Drake pode passar de 40° de inclinação, e vivem na "seca", até dois meses sem sexo, ou então seis meses longe da família. O ser humano se acostuma com tudo, e no caso há recompensas grandes nas paisagens que se vêem e nos portos onde se pára; mas eu não gostaria de ter de me acostumar a isso... Claro, é de admirar e invejar que os viajantes desde Darwin - que passou pela Terra do Fogo em 1832 - tenham enfrentado condições muito mais inóspitas e desbravado fronteiras com sua coragem e inteligência. Não tinham satélites, internet, conhecimentos topográficos e climáticos como os de hoje. Conrad cantou, em livros como Juventude, ao mesmo tempo o drama e a excitação dessa vida sujeita a tantas imprevisibilidades. A mesma natureza humana que extrai prazer da continuidade é a que precisa do descontínuo para se renovar. Quando ouço de alguém "Agora vou sossegar", querendo dizer que vai parar de viver "de galho em galho" e encontrar alguém que o tolere e lhe dê crias, sinto cheiro de velório. Uma mulher, como o mar, nunca é a mesma, e cada dia é possível se reapaixonar por ela. Mas para isso é preciso um senso de aventura no mais comezinho dos hábitos. A primeira das aberturas é a mental. RODAPÉ Outros livros que li antes e durante a viagem, além de O Último Lugar da Terra, foram Antártida - A Última Terra, de Ulisses Capozoli, End of the Earth, de Peter Matthiessen, lenda viva do jornalismo literário, e Terra Incognita, de Sara Wheeler. Esta conta histórias ótimas, como a do pesquisador italiano que recebe um email de rompimento da namorada dizendo: "O seu é maior, mas o dele está aqui." Matthiessen se detém nas sensações de observar as aves e os pingüins e na maneira como o frio e o silêncio da região sugerem nossa "passagem em direção ao vazio". POR QUE NÃO ME UFANO O chapéu à la boliviana que o Equador deu no governo brasileiro foi notícia aqui, abaixo do paralelo 60. Ou melhor, motivo de piadas. "Quem mandou ficar dando de bonzinho com esses populistas latino-americanos?" foi a frase mais suave que se ouviu.

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