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Homem sem rumo a caminho da inquietação

Com belo jogo de intérpretes, peça do norueguês Arne Lygre, dirigida por Roberto Alvim, consegue unir elementos difíceis de serem somados, mistério e encanto

Por Crítica Jefferson Del Rios
Atualização:

Homem Sem Rumo acontece em um quadrilátero recoberto de cascalho negro, tendo à direita um tronco de árvore. Paisagem vulcânica e uma referência à onipresente árvore seca de Esperando Godot, de Beckett, a peça da suprema desolação humana. Mas há a possibilidade de esse descampado ser - por que não? - o lado escuro da mente humana. No enredo, dois homens travam uma luta sem sentido. Três mulheres e uma terceira figura masculina estarão nesse combate vazio, apesar de algumas indicações de caráter econômico. É exatamente na abstração que reside o interesse maior da obra. A insinuação de uma suposta denúncia contra a predominância do dinheiro, etc., só a mediocrizaria. O assunto já foi muito mais bem tratado pelo suíço Friedrich Dürrenmatt em Frank V (grande encenação de Fernando Peixoto, em 1973, que espera de uma remontagem). Para não se falar em Brecht. Diante desses criadores, o norueguês Arne Lygre é peso leve. Em todo caso, o diretor Roberto Alvim soube introduzir mistério e encanto no seu espetáculo, elementos difíceis de serem somados. A cena intriga exatamente pelo tom entre o sinistro e o psicanalítico, típico de uma parte do teatro europeu, de August Strindberg a Dürrenmatt e Peter Weiss. Ou, por outras palavras, basta rever A Hora do Lobo, de Ingmar Bergman, para se entender este ''''realismo sobrenatural'''' das sociedades velhas e do cinismo frio de paraísos fiscais, como Liechtenstein, que nem se localiza direito no mapa. Nessa história, um investidor quer construir uma cidade moderna com o apoio do irmão serviçal, com o qual mantém uma relação de ódio e atração. No topo do empreendimento imobiliário não se constrói um prédio grandioso, mas um hospital com ares de hospício. O dramaturgo Lygre prefere deixar subentendido o motivo de tal fato insólito. Enquanto isso, mulheres irrompem com cobranças, denúncias e até afeto (ex-esposa, filha, irmã. Fantasmas). Como não há geografia precisa pode-se dizer que vieram de lugar nenhum. Talvez da memória do protagonista, de seus pesadelos de culpa. Nesse território morto estão as bases do grupo Club Noir que se apresenta como uma ''''companhia criada com o objetivo de encenar espetáculos contundentes e provocativos que lidem diretamente com questões da atualidade''''. A atualidade é ampla demais para frase tão pequena. Mas Alvim sabe estabelecer climas tensos dentro de uma teatralidade cerimonial. Domina os andamentos do enredo, os silêncios banhados por uma luz cênica que tanto pode ser de subterrâneos assustadores como filtrada por vitrais. Há em todo caso a possibilidade de tudo não ser mais claro, porque a língua norueguesa é difícil e reflete uma cultura de mitos seculares que subsistem na próspera Noruega atual, protestante e expoente de um capitalismo de bem-estar. Aliás, embora nenhuma literatura deva ser posta de lado, é meio intrigante a onda escandinava no teatro brasileiro: de repente estamos meio vikings com Roxo, Um Dia no Verão, ambas de Jon Fosse e, agora, Homem Sem Rumo. Todos importados de Oslo (ou de algum sucesso mais fácil em versão inglesa). Fenômeno só valido para o palco. O romance Fome, por exemplo, de Knut Hamsun (Nobel de 1920), uma das obras-primas do século 20, foi editado no Brasil em 1977 (tradução de Carlos Drummond de Andrade) e caiu no esquecimento. A escritora Sigrid Undset (Nobel de 1928) não é editada aqui desde os anos 50. No último Oscar concorreu um filme baseado em uma obra dela e a televisão a anunciou como ''''o escritor''''. Só a Editora Globo ousou lançar - finalmente - a majestosa saga Gente Independente, do islandês Halldór Laxness (Nobel de 1955). Não chegou a ser um sucesso. Então, se não for só modismo, que se lembre de Eemil Sillanpaa, da Finlândia (Nobel de 1939). O espetáculo atual é sobretudo um belo jogo de intérpretes. Marat Descartes, sutilmente diabólico no papel do capitalista tem um parceiro à altura em Milhem Cortaz que, enfim, se liberta da imagem do musculoso agressivo e tatuado para compor uma figura cinzenta, tipo kafkiano. O trio masculino se fecha com a atuação quase obrigatoriamente discreta de Ge Viana - o autor não lhe concede muito mais como à filha, o que a inexperiência de Ligia Yamaguti acentua. Juliana Galdino tem menos oportunidade por falta de interlocução. É quase um símbolo, um discurso com uma composição sem muita clareza, embora mantenha sua autoridade cênica. Lavínia Pannunzio causa impacto numa personagem de cor clara, algo camponês e místico ao mesmo tempo, e pode contracenar diretamente com Milhem. Seu olhar amoroso e assustado é toda uma comovida situação dramática. Na soma, Homem Sem Rumo é teatro de inquietação e perguntas longe. Nele há ofício, convicção e procura. Locais e seres estranhos de uma vaga Escandinávia. Não por acaso, o labiríntico Jorge Luis Borges dedicou um poema à vizinha Islândia representada no solo negro desta encenação. Serviço Homem Sem Rumo. 100 min. 14 anos. Sesc Avenida Paulista (44 lug.). Av. Paulista, 119, 3179-3700. 6.ª a dom., 21 h. R$ 20. Até 16/12

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