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História de dois encontros

Por Milton Hatoum
Atualização:

Na década de 60, rapazes e moças de famílias ricas de Manaus gostavam de frequentar aos domingos o "mingau dançante", uma festinha vespertina num clube da cidade. No meio da tarde, reuniam-se na Praça da Saúde, onde tomavam sorvete antes de entrar no clube. Enquanto a moçada dançava, rumores insinuavam que os adultos jogavam carteado numa sala decorada com poltronas forradas de brocado suíço, cortinas de veludo alemão e tapetes persas. Nunca vi essa sala luxuosa, tão adaptada ao clima do equador. Mas esses rumores falavam também de perdas enormes durante a jogatina, homens e mulheres que entregavam ao ganhador anéis com brilhantes e relógios com pulseira de ouro. Não era raro um jogador perder uma propriedade. Dizem que um desses perdedores teve que morar numa pensão perto do porto. Uma dessas tardes eu estava com um amigo do ginásio Pedro II e convidei-o para assistir à apresentação da nossa banda de música, que ia dar uma canja antes do encerramento do mingau dançante. Os outros músicos já estavam no clube e me esperavam. Na porta, me apresentei como um dos membros da banda. O porteiro fez um gesto: podíamos entrar. Mas um homem de uns 35 anos, talvez um dos diretores do clube, barrou meu amigo: Só o músico, ele disse. O acompanhante, não. Por quê?, perguntei. Ele é meu amigo. Gente de cor não entra aqui. Meu amigo se afastou e desceu a avenida, calado. Fui atrás dele, mas ele me disse que era assim mesmo, que já estava acostumado com essas coisas. Pediu para que eu voltasse para o clube e participasse da apresentação. Estudávamos na mesma sala do Pedro II, onde concluímos o curso ginasial. Depois eu saí de Manaus e passei muito tempo sem vê-lo. Em abril, quando visitava a cidade, encontrei por acaso meu amigo na Praça da Saudade. Era uma quinta-feira nublada e úmida, e ele se dirigia para o tribunal. Quase não o reconheci: parecia um atleta, e nem de perto aparentava um cinquentão. Usava paletó e gravata; reparei também nas abotoaduras pretas, nos sapatos de cromo, no guarda-chuva cinza, de ponta finíssima. Quando me abraçou, perguntou se eu ainda cantava. Ou se cantava enquanto escrevia. Mais de 40 anos, ele acrescentou, com um vozeirão alegre, que contrariava o menino tímido e humilhado da nossa juventude. Depois disse que era sócio de um escritório de advocacia. Havia cursado doutorado em direito empresarial na universidade de Chicago. Mas devo minha carreira à escola pública, ele prosseguiu. Aliás, nós dois devemos, não é mesmo? Concordei. E continuamos a conversar enquanto atravessávamos a Praça da Saudade; depois paramos num bar da Praça da Saúde, onde ele se lembrou daquele episódio, "na época em que tu tinhas pretensões musicais e eu era um negrinho, filho de uma lavadeira com um estivador. Tu te lembras que eu fui barrado?" Agora me lembrava. O clube não era mais o mesmo. A velha elite oligárquica de Manaus havia desaparecido por completo. Quase toda a economia da cidade e do Estado dependia das centenas de fábricas do polo industrial. Tomamos um suco de graviola, contei um pouco da minha vida, saltando anos e cidades. Disse a ele que a impressão de uma vida inteira só se conta num romance. Nos bons romances, ele observou, apressando-se para pagar a conta. Ele parecia o penúltimo cavalheiro de uma cidade feroz. Deixamos a Praça da Saúde e, diante do clube, vimos um velho, os braços caídos, o olhar baço perdido no céu escuro. Ele estava sentado numa cadeirinha na soleira da porta. Meu amigo parou e estendeu o guarda-chuva para a mão enrugada e trêmula, que apertou o cabo como se fosse a mão de um homem. Meu amigo riu: Toda quinta-feira ele cumprimenta o meu guarda-chuva. A primeira vez que joguei uma nota de dez reais no chão, ele se ofendeu e disse que não era mendigo. Mas depois vi que apanhou a nota e pôs no bolso. Outro dia me pediu 20 e eu dei. É um louco ou um mendigo?, perguntei. É o cara que me barrou, disse o advogado. Enquanto descíamos a avenida, notei que ele estava com pressa. Na calçada do tribunal, ele pôs a mão no meu ombro e disse: Hoje à noite tenho que terminar de redigir um processo. Massa falida. Uma coisa chata e triste. Mas que tal amanhã? Vamos comer uma peixada?

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