Herança ''escrita em brasileiro''

Marco do romance regionalista, A Bagaceira, de José Américo de Almeida, chega atual aos 80 anos

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Por Vilma Arêas
Atualização:

"Bagaceira" significa lugar onde se põe o bagaço da cana, depois de triturada. Trata-se de atividade do "brejo" ou "agreste", região fértil do Nordeste, ligada à agricultura. A relação senhor/cabras do eito (trabalhadores braçais) é semelhante à escravidão, que naturaliza a exploração, arrastando a decadência moral. A tal espaço se opõe o "sertão", região da pecuária longe da costa e atingida pela seca. A partir principalmente do começo do século passado, o sertão passou a ser lido literariamente como o espaço nacional em estado puro, onde os sentimentos de honra e liberdade são preservados. Adiantando e resumindo muito, essa oposição sustenta A Bagaceira, de José Américo de Almeida, cujo personagem central, conforme afirmou Rachel de Queiroz com acerto, é o meio físico e social do brejo, essa estranha terra de Canaã onde se passa fome, dominada pelas leis brutais do latifúndio corruptor da honra sertaneja. É por esse viés que o autor abala os fundamentos folhetinescos do enredo, a que não faltam nem o sinistro, nem triângulos amorosos incluindo pais e filhos, envoltos em semelhanças que criam equívocos e peripécias. Desmistificado o idílio, o estupro de Soledade, símbolo do sertão conspurcado pelo brejo, se equipara ao açoitamento e prisão de Xinane, por ter roubado do que plantara, após ser arbitrariamente expulso da terra. Em ambos os casos, o agente é Dagoberto, o "homem-máquina" dono do engenho, que confessa logo no primeiro capítulo lucrar com as secas. Esta 43º edição nos 80 anos de A Bagaceira (José Olympio, 294 págs., R$ 34), com "Introdução" de Cavalcanti Proença, ilustrações de Poty e várias informações bibliográficas úteis, testemunha o interesse do livro. A verdade é que José Américo de Almeida realiza até hoje o prodígio de fundamentar tanto as críticas quanto os louvores que lhe foram feitos, desde seu surgimento em 1928. Neste mesmo ano, Macunaíma, de Mário de Andrade, Laranja da China, de Alcântara Machado, e Martim Cererê, de Cassiano Ricardo foram publicados. Apesar de diferenças profundas, os livros atestam que o período apostava na renovação literária vinda de 1922. No Nordeste, a nova orientação datava do Manifesto Regionalista de 1926. No número 6 da Revista de Antropofagia (1928), José Américo faz uma profissão de fé. Afirma a importância de pensar no Brasil com objetividade e discernimento, de "escrever em brasileiro" e abandonar "o paradoxo, a ironia e todas as deformações de sentido". Confessa em seguida que a aplicação do método é "dificílima". Sem dúvida, e ele é a melhor prova. Assim como é difícil estabelecer uma filiação para o livro, pois A Bagaceira se situa no limite cruzado de estilos opostos: a verbosidade do passado - pensemos em Os Sertões - versus a literatura nova da redescoberta do Brasil; a marca erudita com resquícios clássicos unindo-se ao vocabulário regional; e o cientificismo misturando sermão com naturalismo, além de críticas à fragilidade do intelectual. (Um personagem explica a própria incoerência como "contrapeso da hereditariedade promíscua.") Se passamos ao enredo, ele também exige do leitor discernimento no cipoal de equívocos e reflexos verdadeiros e enganosos, que rebatem simbolicamente numa paisagem pintada com o capricho de um colorista e a insolência moderna: "A noite nua sem o maillot das nuvens..." ou "zoava no mato um jazz-band de chocalhos". No prefácio (Antes Que me Falem) José Américo toca em algumas dessas questões: "Há muitas formas de dizer a verdade. Talvez a mais persuasiva seja a que tem a aparência de mentira"; "Valem as reticências e as intenções", frase que nos convida a "ver bem", isto é, a "ver o que os outros não vêem". Afinal, quem se reconheceria "se se encontrasse em pessoa"? Em entrevista ao Estado, citada por Ângela M. Bezerra de Castro (Re-Leitura de A Bagaceira), o próprio José Américo se explica: "Quis fazer uma obra diferente, daí a estrutura do livro que pode parecer arbitrária, tudo salteado, tudo cinematográfico, pois eu não me preocupava com a ação, ou melhor, com o enredo clássico." Segundo penso, Antonio Candido (Formação da Literatura Brasileira) compreendeu melhor que ninguém as dificuldades de nosso romance regionalista, se comparado com o indianista. Este contava com modelos anteriores, e a diversidade das culturas em confronto abria espaço à fantasia; no romance regionalista não havia tal modelo e o dado real, próximo do escritor, cortava rente o elemento de arbitrariedade necessário à ficção. O problema não era o dado real, fácil de perceber, mas a "situação narrativa". Daí a excessiva adesão a motivações ideológicas e os tateios de execução que observamos no gênero e em A Bagaceira, pois José Américo errou a mão em muitos momentos. Mas acertou quando transformou tais "tateios" em pregnância de sentido e em jogo de reticências, espalhando zonas opacas na transparência solar do agreste. Certamente essa construção antitética e esse apagamento de rastros foi herança preciosa para os que vieram depois. Vilma Arêas, professora de literatura brasileira da Unicamp, é autora de Clarice Lispector - Com a Ponta dos Dedos, Na Tapera de Santa Cruz, Trouxa Frouxa, entre outros

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