Habilidade contínua de provocar

Palestras e entrevistas revelam credo artístico de Karlheinz Stockhausen

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Por João Marcos Coelho
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Karlheinz Stockhausen está para a segunda metade do século 20 assim como Beethoven para o século 19 e Schoenberg para a primeira metade do século passado. Desta trinca, pode dizer-se que a história da música teria sido completamente diferente se eles não tivessem existido. Beethoven foi chamado de velho surdo incapaz de escrever música, a propósito de seus últimos e inovadores quartetos de cordas; Schoenberg levou malho de todo lado quando propôs o atonalismo e em seguida a música serial como consequência lógica do esgotamento da tonalidade; e Stockhausen estabeleceu os principais parâmetros pelos quais gravita a música contemporânea desde o final da 2ª Guerra. Mais do que isso: como Beethoven, e ao contrário de Schoenberg, Stockhausen continuou chocando opinião pública, público, músicos e establishments musicais por todo o planeta durante meio século. Nas palavras de Robin Maconie, o maior especialista em Stockhausen da atualidade, "se um gênio é alguém cujas ideias sobrevivem a todas as tentativas de explicação, então por definição Stockhausen é o que mais próximo de Beethoven este século produziu". A outra prova de sua genialidade "é uma habilidade contínua de provocar", diz Maconie. A última provocação do compositor nem foi musical, mas verbal. Em setembro de 2001 ele afirmou que o ataque às torres gêmeas foi uma maravilhosa obra de arte proporcionada pela Al-Qaeda. Os malhos vieram de todo lado. Talvez isso explique o relativo silêncio por aqui em torno de sua morte, em dezembro de 2007, aos 79 anos, felizmente agora rompido. A Editora Madras lança Stockhausen - Sobre a Música, livro que contém uma série de palestras e entrevistas compiladas por Robin Maconie (238 páginas, R$ 34,90), com prefácio do compositor Flo Menezes, além de uma lista de obras e gravações. As palestras foram realizadas em Londres em 1971 e versam tanto sobre sua vida quanto sobre sua obra até aquele momento. Desconte-se sua megalomania, desculpável pela grandeza e radicalidade de sua obra. Ele foi o único a encarar o maior desafio da música de 1950 para cá, "descobrir uma teoria musical racional e objetiva para substituir a estrutura limitada e inadequada da tonalidade convencional", diz Maconie. "É sua conquista extraordinária ter demonstrado que a base teórica da nova música - seja serial, eletrônica, estatística ou indeterminada - pode ser apresentada como poderosa, racional, coerente e universal." Stockhausen sintetiza com uma clareza desconcertante a sua meta: "Quero construir uma nova tradição, uma tradição acústica, transmitida pelos ouvidos. (...) esta nova tradição auditiva que comecei significa que nosso conhecimento musical virá a se basear mais e mais na experiência direta do trabalho com sons, em vez de na escrita no papel. (...) A obra de arte não é mais um objeto morto, algo a ser negociado de lugar em lugar, uma partitura musical a ser executada, da qual a mais alta interpretação que se considera é aquela em que um músico segue exatamente as instruções impressas na página. De fato, este é apenas um aspecto da criatividade. Muito mais interessante é a resposta de um músico a uma obra determinada pelo que chamo de ?planejamento de processo?: planos para processos musicais que permitam muitas execuções diferentes, apesar de todas compartilharem uma similaridade genérica básica". A parte mais sensacional está na resposta à questão de como deveria ser um curso de música hoje. A matéria principal é o treinamento em escuta. "Isso envolve escutar algo que você não conhece em absoluto, de uma gravação em fita, depois transcrever do modo que estudantes de fonética na universidade transcrevem um dialeto africano não familiar. (...) Transcrição desse tipo é o melhor treinamento básico de todos para um músico, porque dessa forma um estudante realmente começa a escutar." Depois: treinamento em canto ou em tocar um instrumento. A análise é importante, mas por meio da audição. A acústica é extraordinariamente importante. "Você começa analisando sons estacionários, musicais e vocais, e segue gradualmente para a análise de sons menos estacionários; desse modo você descobre do que trata a acústica." A observação final é ainda mais inesperada: "Recomendaria que todo estudante de música saísse para dançar pelo menos uma vez por semana. Por favor, realmente dancem: três ou quatro horas por semana. Qualquer dança, o que quer que esteja tocando na discoteca ou no clube de dança. Você deve dançar com um parceiro, e em ritmos e tempos diferentes: lento, médio, rápido. Faça suas próprias noites com fitas de danças populares. Deve haver um bom professor de dança na equipe".

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