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Guédiguian encara o território noir

Sob o tema da vingança e num clima crepuscular, Lady Jane, que estréia amanhã, flagra incursão do diretor no gênero policial

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Foi a quarta viagem de Ariane Ascaride ao Brasil - e cada vez mais ela se encanta com o País. Ariane já esteve em Porto Alegre, no Rio, em São Paulo (claro). Na semana passada, integrando a caravana de artistas franceses que veio participar do 1º Panorama do Cinema Francês no Brasil, ela teve oportunidade de comentar - mais uma vez - as similaridades entre Marselha e Rio. Certa noite, caminhando nas ruas do Rio, ela teve a impressão de estar em Marselha, a cidade que normalmente serve de cenário para os filmes de seu marido, Robert Guédiguian, incluindo Lady Jane, que estréia amanhã. Lady Jane foi o concorrente francês no Festival de Berlim, em fevereiro. Ariane é a primeira a identificar o filme como um objeto estranho na obra do marido. ''Robert há tempos queria experimentar. O tipo de cinema social que ele faz estava se tornando uma camisa-de-força, porque é aquilo que os críticos e o público esperam dele. Interessava-lhe realizar alguma coisa noir, em que pudesse exercitar sua admiração por Jean-Pierre Melville. E ele fez Lady Jane.'' Para o caso de o leitor não saber, Meville, além de precursor da nouvelle vague, o movimento de renovação do cinema francês por volta de 1960, foi o grande mestre do policial em seu país, realizando filmes que se tornaram clássicos, como Os Profissionais do Crime, com Lino Ventura e Paul Meurisse, e O Samurai, O Círculo Vermelho e Expresso para Bordeaux, com Alain Delon. O cinema de Melville, à base de códigos de gêneros, possui uma artificialidade assumida que não tem muito - ou não tem nada a ver - com Guédiguian. Mas o clima noir é uma ponte possível entre Lady Jane e o cinema do chamado ''mais norte-americano dos diretores franceses''. Pela amostra da exibição do filme na semana passada, durante o 1º Panorama, Ariane acha que Lady Jane leva jeito de pegar no Brasil. ''Algumas pessoas vieram falar comigo após a projeção, e o debate, dizendo que o tema da vingança pode ter uma ressonância forte com a platéia brasileira.'' O filme conta a história dessa mulher, dona de boutique em Marselha, cujo filho é seqüestrado. Ela convoca dois ex-amigos com o pé no submundo para ajudá-la a recuperar o garoto. O trio barbarizava no passado e agora ele vem de volta. É bom nada mais acrescentar, para não tirar a graça das descobertas que o espectador vai fazendo, e que são fortes, tensas. Todo diretor tem direito de mudar, de tentar coisas novas, mas Robert não estará se expondo demais? Afinal, outro de seus filmes recentes, O Último Mitterrand, já assinalava uma mudança. O filme com Michel Bouquet, como indica o título, reconstitui a fase final do ex-presidente socialista François Mitterrand. ''Nem me fale'', diz Ariane. Embora admire o trabalho impecável do ator - ''Michel (Bouquet) é mais Mitterrand que o próprio'', ela concorda com o repórter do Estado -, Ariane admite haver discutido muito com o marido. Ela nunca entendeu direito o porquê da necessidade dele de fazer aquele filme. O próximo talvez marque o retorno de Guédiguian a seu cinema mais engajado. Será um filme de guerra, sobre integrantes de uma brigada internacional, vinda da Espanha, que executam oficiais nazistas, durante a ocupação da França pelos alemães. A organização foi denunciada, todos foram mortos, incluindo o poeta armênio que liderava o grupo. A história, devidamente ficcionalizada -, Guédiguian não vai fazer um documentário - é real. Título e elenco ainda estão em fase de definição. Ariane fará um pequeno papel. Quanto ao fato de o líder do grupo ser um armênio, Guédiguian assumiu recentemente, com Armênia, a sua condição de descendente de armênios. ''Isso veio para ficar no trabalho dele'', diz. A incursão do marido pelo filme de guerra ocorre num momento em que outros diretores franceses - Claude Miller em La Promesse; Jean-Paul Salomé em Les Femmes de L''Ombre - também contam histórias desenroladas na 2ª Guerra. Ariane conta que outros filmes estão sendo realizados sobre o mesmo período. Ela arrisca sua interpretação. ''No fundo, tenho a impressão de que nós, franceses, não estamos satisfeitos com os rumos da França, na era Sarkozy. Buscamos no cinema, quem sabe, um tipo de heroísmo que não existe mais na vida.'' O repórter faz algum tipo de comentário sobre a confusão da própria esquerda francesa, que estaria refletida no trio de protagonistas de Lady Jane (e em seu passado). Ariane, esquerdista de coração e mente, não poupa socialistas nem comunistas franceses. É o seu ponto de atrito com Guédiguian. ''Essa crise que perdura até hoje não se deve só às mudanças ideológicas no mundo, mas foi plantada pela presidência imperial de Mitterrand.'' Ela se arrisca a considerar Lady Jane ''um dos melhores filmes de Robert''. Agrada-lhe a amargura, o clima crepuscular envolvendo os personagens. E ele filma bem a sua Marselha. ''Por ele, nunca sairia de lá, estou falando em termos de obra. Temos uma casa em Paris e ele filmará na capital sobre os imigrantes estrangeiros que lutaram na Resistência durante a Segunda Guerra, como filmou Os Últimos Dias de Mitterrand, por necessidade de verossimilhança e dramaticidade.'' Talvez por conta da militância política dela e do marido, Ariane conta um episódio. Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, recém-eleito, foi à França, uma recepção lhe foi oferecida. Ariane foi convidada. Ela se surpreendeu ao ver que era a única artista no meio de políticos. ''Estavam lá Lionel Jauspin e todos os outros. Quando Lula chegou, passei na frente de todo o mundo e disse para ele que não sabia o que estava fazendo lá, mas estava honrada. Apertei-lhe a mão e pedi, do fundo do coração - ''Surtout faites pas de conneries.'''' Lula tem sido tão criticado no Brasil. O repórter pergunta se o presidente, para Ariane, está fazendo as cretinices - ou babaquices - que ela lhe implorou que evitasse. Sua resposta vem rápida. ''Pode-se criticar certos aspectos de seu governo, mas não as suas boas intenções nem a sua integridade pessoal. A questão é que o Brasil é um país vasto, com muitos problemas. Não se pode resolver tudo de uma hora para outra. Sei que sou uma estrangeira falando do País, mas amo o Brasil e torço por vocês. Digam o que disserem, Lula não está fazendo conneries.''

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