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Gógol, o pregador do feudalismo

Almas Mortas, que expõe engenhosos casos de corrupção e de práticas ardilosas, se mantém extremamente atual

Por Aurora Bernardini
Atualização:

Filho varão primogênito de mais de dez irmãs, Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852), franzino, astênico (dotado de um apêndice nasal extravagante, acrescenta um seu prefaciador francês), nascido em uma família da pequena nobreza ucraniana, foi mimado pelos pais receosos por sua saúde, pela avó materna que lhe contava histórias dos heróicos hetmans de outrora e até por um remoto parente e benfeitor da família, Dmitri Trochtchínski, antigo ministro de Alexandre I, na época retirado em sua propriedade, amante de espetáculos teatrais que eram apresentados por servos e/ou convidados no grande palco que mandara construir em seu parque. Seu próprio pai já escrevera comédias em ucraniano e era um bom contador de histórias. A mãe, amantíssima e muito religiosa, impressionara-o, quando criança, com quadros da vida futura no Paraíso e no Inferno, que, entre pesadelos e suores frios, conforme escreverá Gógol em uma carta de 2/10/1833: ''Me despertaram toda a sensibilidade e fizeram alvorecer em meu espírito e germinar mais tarde, os mais altos pensamentos.'' Isso já parece prenunciar as duas vertentes de sua escrita futura que, esboçada em parte em ucraniano durante seus (abominados) anos de ginásio, desabrocharia em russo a partir de sua ida a São Petersburgo, em 1828. Por um lado, composições romântico-gótico-folclóricas como Hans Küchelgarten, Tarás Bulba,Vii, A Terrível Vingança, etc., e por outro as obras satíricas como O Capote, O Diário de Um Louco, O Nariz, O Inspetor Geral, Almas Mortas, etc., em que, tal como é citado na pequena biografia de Paulo Bezerra que precede esta edição, o próprio autor se define como ''escritor cômico'': ''Todos estão contra mim (diz Gógol em carta a um amigo, em 1836, após a apresentação petersburguesa de ''O Inspetor Geral''). Funcionários velhos e respeitosos bradam que para mim não existe nada sagrado quando tenho a ousadia de me referir dessa maneira a homens do serviço público. Os policiais estão contra mim, os grandes comerciantes estão contra mim, os literatos estão contra mim... Agora eu vejo o que significa ser escritor cômico. O mínimo indício de verdade e camadas inteiras se levantam contra você.'' Por trás da sátira, por trás do grotesco, por trás das caricaturas inclementes e dos curiosos usos populares também está (como muito bem viu o crítico Boris Eichenbaum em Como Foi Feito O Capote de Gógol), além do autor, o verdadeiro ator que as formula: a narração direta torna-se um jogo em que não será apenas a simples combinação de anedotas que determina a composição, mas o sistema de diferentes trejeitos e de movimentos articulatórios singulares. De fato, em Almas Mortas, que é uma sucessão de cenas diversas ligadas pelas viagens do protagonista - o incorrigível Tchítchikov em busca da compra das ''almas'' dos servos mortos, entre um recenseamento e outro - e que Gógol lia admiravelmente em voz alta, conforme testemunham muitos de seus contemporâneos, pode se notar que à imitação mímica se alternam trechos declamatórios (líricos, patéticos, etc.). Veja-se o que diz P.V. Annenkov, seu contemporâneo: ''Nikolai Vassílievitch punha o caderno diante de si e nele se absorvia totalmente. Começava a ler ditando, de forma solene e ritmada, com tanto sentimento e expressividade que os capítulos do primeiro volume de Almas Mortas assumiram um colorido particular em minha memória. No trecho do jardim de Plúchkin, a ''paixão'' de seu ditado atingiu uma altura nunca igualada, sempre guardando sua simplicidade. Gógol chegava mesmo a levantar-se de sua poltrona e acompanhar a leitura com gestos altivos e imperiosos.'' Tendo também isso em vista, Almas Mortas é uma obra extremamente viva e, com a exposição dos engenhosos casos de corrupção e de práticas ardilosas, extremamente atual. Escrita entre 1835 e 1852, é reeditada agora, incluindo a segunda parte incompleta, como lembra Boris Schnaiderman no texto Almas Mortas, A Visão de Um Poeta, tal como a deixou o autor após ter queimado o manuscrito duas vezes. O tom apologético e grandioso do Gógol - ''pregador do feudalismo'' (assim o define a edição da Academia de Ciências de 1959), que marca alguns episódios finais dessa parte - não agradou ao próprio autor, que entretanto o retomou em escritos confessionais e proféticos como Trechos Escolhidos da Correspondência com Amigos, pouco antes de morrer, em desgraça com esses mesmos amigos que não podiam aceitar sua obscura faceta antidemocrática. A excelente tradução de Tatiana Belinky, que soube ser fiel ao estilo do original, manteve com uma graça toda especial anedotas e provérbios que enriquecem a nossa língua e a nossa sensibilidade. Aurora Bernardini é professora de pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da USP

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