Fusili à moda da Lapa no reencontro

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Por Ignácio de Loyola Brandão e FOZ DO IGUAÇU
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Estava almoçando com Sueli Brandão, organizadora do 2º Salão Internacional de Livros, e com Rogério Bonatto, editor do jornal A Gazeta do Iguaçu. Eu brincava com Rogério, que tanto tinha louvado as cataratas. "Elas não existem, meu amigo. Estive lá e vi. Aliás, não vi." Seca tenaz no Sul, as águas das cataratas caem quase aos pingos, as rochas parecem a cratera de um vulcão extinto. Mesmo assim, impressionam. Foi quando minha garganta se manifestou dolorida. Como à noite eu faria uma palestra e como fantasmas de uma gripe rondavam a atmosfera, perguntei se havia uma farmácia perto, queria comprar própolis e aspirina com vitamina C. Automedicação caseira, que o meu médico não condenaria. "Vitamina C? Aspirina? Serve uma Bayer alemã?", perguntou Rogério. Respondi que sim e, quando o vi, estava ao celular, pedindo que o motoboy do jornal viesse ao restaurante. Cinco minutos depois, o jovem estava à nossa frente e recebeu a incumbência: "Vá ao Paraguai e me traga um frasco grande daquela aspirina alemã que me comprou na semana passada." Virando-se para mim, Rogério acrescentou: "É tiro e queda!" Em cada lugar deste grande e diverso país há usos e costumes cotidianos, tão diferentes dos nossos. Para a gente de Foz do Iguaçu, por exemplo, sair para jantar na Argentina é coisa corriqueira. Assim como corriqueiro, e cada vez mais movimentado, tem sido o Salão Internacional de Livros, este ano aberto por Cristovão Tezza e que teve Alice Ruiz, Pedro Bandeira, Marcos Sá Corrêa, Fabrício Carpinejar, Tão Gomes Pinto, Eugenio Bucci, Lira Neto, Carlos Lopes, além de contadores de histórias, oficinas literárias, shows, microaula-show, corais, lançamento de livros. No Salão foi anunciada pelo deputado Marcelo Almeida, presidente da Frente Parlamentar Mista de Leitura, a criação do Fundo Setorial do Livro que disponibilizará, anualmente, R$ 40 milhões para projetos literários no Brasil, entre eles a implantação de bibliotecas e o patrocínio de pequenos contadores de histórias. Marcelo tem percorrido o interior paranaense procurando estimular os prefeitos a criarem Planos Municipais de Leitura. Por outro lado, num jantar, a secretária de Cultura Vera Mussi, uma daquelas pessoas com quem dá prazer conversar, revelou-me o projeto da Biblioteca Cidadã, destinado a dotar regiões carentes do Estado com um equipamento cultural que promova a democratização do conhecimento. Espaços de 184 metros quadrados recebem uma biblioteca com 2 mil livros inicialmente, aparelhos de áudio, vídeo e informática para acessos à internet. Nada menos de 110 municípios já abrigam o projeto e até 2010 se chegará ao número 200. Quer dizer, apesar de tudo, aqui e ali, secretários de grande porte (digo cultural e intelectual) estão agindo, movimentando, fazendo. E eu que sempre reclamo da literatura esquecida! O 2º Salão esteve lotado todos os dias. Fiquei emocionado ao saber que, depois de ter falado para as crianças de manhã, muitas levaram seus pais à noite, para ouvir e perguntar. Várias, por timidez, não tinham tido coragem de levantar a mão. E queriam ouvir de novo. Vai ver, é esta minha cara brava. Resultado: à noite, o público dobrou. A coisa funcionou ao contrário. Em vez de pais estimularem os filhos, estes é que incentivaram os pais. Fui levado ao hotel Carimã, o dono queria que eu autografasse um livro e estava feliz por me oferecer um almoço. Na hora das apresentações, um nome aqui, outro ali, não guardei o nome do homem. No escritório dele, vi uma foto do José Mauro de Vasconcelos. Indaguei, e o homem, com uma expressão plácida, respondeu. "Zé era nosso amigo lá na Lapa, em São Paulo. Na Viação Gato Preto, da nossa família, os ônibus eram batizados com títulos dos livros de Zé Mauro, e com nomes de mulheres." Então me lembrei de uns ônibus de cor laranja que ostentavam nomes como Meu Pé de Laranja Lima, Rosinha, Minha Canoa, Confissões de Frei Abóbora, Arara Vermelha (que foi filme com Ana Maria Nabuco, uma loira sensualíssima. Onde estará?) Súbito, me vieram imagens familiares dos anos 70. Eu casado com Bia, irmã de Regina Braga (essa mesma, a atriz de teatro e televisão, hoje mulher de Drauzio Varella), que por sua vez na época era casada com o diretor teatral Celso Nunes, uma das grandes revelações da época com encenações inesquecíveis, entre elas O Interrogatório. Eram diários os meus encontros com Celso, nossos filhos nasceram e cresceram juntos. Um dia, ele me contou de sua infância na Lapa, falou de seus pais, dona Afra e seu Julio, pessoas humildes que fizeram tudo para o filho estudar e trabalhar. O que mais emocionava Celso era um homem chamado Erminio Gatti, um dos donos da Gato Preto, que lhe deu o primeiro emprego aos 12 anos, e terminou sendo seu padrinho. Ao longo dos anos, Celso e eu temos mantido essa ligação. Agora, ele mora em Florianópolis. E de vez em quando ele se lembra daquele padrinho perdido de vista. Quando terminei, o dono do Carimã estava de pé e havia lágrimas em seus olhos. "Sou Erminio Gatti", ele me disse. "Celso era afilhado meu e de minha irmã Anita. Há anos não o vemos, perdemos contato. Agora, nos ligamos outra vez. Coisa curiosa esta vida. Como ela arma suas teias?" Em homenagem ao reencontro, Erminio ligou para a cozinha e pediu carneiro com fusili. Um fusili feito à velha maneira da Lapa, bairro tradicional de italianos. Massa que dona Afra e seu Julio aprovariam, tão delicada e tenra estava.

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