PUBLICIDADE

Foliã tropicalista

Com o sacudido álbum Maria Alcina Confete e Serpentina, a cantora ganha uma produção digna de seu talento, com foco na cena paulistana contemporânea

Por Lauro Lisboa Garcia
Atualização:

São Paulo foi onde o movimento tropicalista se concretizou. É onde a mineira Maria Alcina mora há décadas e tem público cativo para suas sempre deliciosas estripulias. Sua primeira gravação foi um compacto com Mamãe, Coragem (Caetano Veloso), em 1971, extraída do manifesto Tropicália - Ou Panis et Circensis, de quatro anos antes. Hoje aqui também se produz muita música boa e moderna, seja de nativos ou forasteiros de índole cosmopolita. Foi por isso que ela deu uma levantada na carreira em 2003 ao lançar o CD Agora, com os cérebros eletrônicos do Bojo. Pois tudo isso converge para o novo álbum da cantora, Maria Alcina Confete e Serpentina (Outros Discos), desde já um dos melhores do ano e um marco de sua carreira de poucos títulos. Tom Zé e Carmen Miranda (1909-1955), outras pontes entre ela, Caetano, Gal Costa, Rita Lee e Nara Leão (1942-1989), reverberam no CD. Ouça Roendo as Unhas e Maria Alcina, Confete e Serpentina Com produção de Maurício Bussab, do Bojo, o álbum foi gravado com muita calma durante dois anos e meio. Mais de 30 canções foram trabalhadas e uma inédita de Jards Macalé (Balada) acabou ficando fora. "A convivência de longa data com Maurício ajudou a criar uma vontade, musicalmente falando, entre o produtor e a cantora", diz Alcina. "Ele é um músico muito sofisticado, diferente de mim, mas a gente forma uma boa dupla." Mais tropicalista do que nunca, essa grande foliã da música pop brasileira solta a voz trovejante em meio a um repertório híbrido e de sonoridades modernas e variedade de bons timbres, na produção mais digna que já ganhou. A ousadia está na base, o bom humor é fundamental. É com essas ferramentas que ela e o produtor dão banho eletrônico no nobre do samba Paulinho da Viola (Roendo as Unhas), sem deturpá-lo, e pegam o roqueiro baiano Ronei Jorge (O Drama) na curva do samba. Armam uma sequencia com um catarinense de Alagoas (Wado, autor de Não Pára) e outro baiano, paulistanizado (Moisés Santana) como Tom Zé, que assina uma inusitada parceria com o mineiro Lô Borges, Açúcar Sugar, que diz "justamente me deixando enterrado, ela me vê rebrotar". A dupla ainda revitaliza o espírito do cachorro vira-lata, "sem coleira e sem patrão", do repertório de Carmen Miranda, com quem Alcina se identifica até a última pluma do boá. Repõe o bloco na rua com Sérgio Sampaio e continua no carnaval com homenagens sacudidas do pessoal da banda Numismata, com quem ela já trabalhou, como o frevo de trio elétrico Das Tripas, Coração. Adalberto Rabelo Filho, que também sugeriu músicas para o repertório, a presenteou com a marchinha que dá título ao CD e, segundo a cantora, sintetiza seu universo multicor. No meio dessa folia eletrônica, ela dá ainda uma bela panorâmica na música contemporânea de São Paulo, incluindo os brinquedos de Tatá Aeroplano (do Cérebro Eletrônico), Roseli Martins (autora de Regador), a Banda do Fumaça (na divertida marchinha Espaço Sideral, de Moisés Santana) e a parceria de Alzira E com Arruda (Colapso). Não foi intencional ter essa representatividade dos contemporâneos de São Paulo no disco. "Depois que passou um tempo, ouvindo as gravações, notei quanta gente bacana estava reunida ali", diz Alcina. "Mas aí é coisa do Maurício, foi ele quem me apresentou a esse pessoal." Bussab rebate: "Ela de fato começou a frequentar esse circuito com o Bojo, mas continuou por iniciativa própria." Alcina conta que ela e o produtor chegaram ao bom resultado de cada faixa brincando no estúdio. "A gente passava a tarde inteira numa música só, curtindo a sonoridade. Depois de ter ficado tanto tempo sem gravar, acho isso um privilégio, tendo um produtor do nível de Maurício." Açúcar Sugar é um dos momentos mais interessantes do disco, ao lado de Roendo as Unhas e de Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua (Sampaio), que desliza num crescendo etéreo, espacial, entrando no ritmo carnavalesco do refrão. Invertendo os papéis do masculino e do feminino com Ney Matogrosso, Maria Alcina não atingiu o estrelato dele, mas seus princípios são correspondentes. Ele com voz em falsete e ela com o timbre "masculino", ambos deslancharam na carreira quase simultaneamente, desafiaram os padrões de comportamento e dos costumes, são ícones gays e foram considerados "indecentes" pelo regime militar. Vulcões da liberdade, eles também têm Carmen Miranda como ídolo, gravaram até a mesma música de Eduardo Dusek (Folia no Matagal, outro "mirandista" inveterado) e do repertório da Pequena Notável: Cachorro Vira-Lata (Alberto Ribeiro), em tempos diferentes, mas com o mesmo traço brejeiro. Todo trabalho de Alcina tem música de Carmen. Numa homenagem a seu ídolo em Nova York, em 1995, foi honrosamente qualificada pela crítica musical como uma atualização da própria. Em 34 anos de carreira, Alcina tem apenas seis discos gravados, incluindo o atual. Fez enorme sucesso em 1972 defendendo Fio Maravilha (Jorge Ben), no Festival Internacional da Canção, e lançou na sequência dois ótimos álbuns que levavam apenas seu nome. Depois deitou e rolou na malícia dos forrós nordestinos de duplo sentido. Nos anos 80 e 90, com apenas um disco em cada década, trocou a carreira de cantora pelo cargo de jurada em programa de calouros na tevê. "Parei de gravar porque fiquei sem gravadora. O mercado mudou ali, quando estourou a música sertaneja e o resto parou." Na ocasião, seu Bucaneira (1992) teve lançamento tímido. A volta por cima veio com o Bojo em 2003, quando seus dois primeiros álbuns foram lançados em CD com faixas-bônus. Dia 28 de março, ela faz show de lançamento do novo trabalho no Sesc Pompeia. É mais um arranque revitalizador de sua carreira. "Fico muito feliz que ela tenha conseguido se alinhar na cabeça das pessoas, de volta, com essa massa de produção arriscada e interessante que está acontecendo em São Paulo agora", diz Bussab. "Ela não mereceu o ostracismo em que foi jogada. Primeiro porque ela se mantém tecnicamente em forma. Além disso, é muito bem informada e não tem nenhum ranço saudosista. Sempre aponta pra frente."

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.