O filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955), um dos principais pensadores do século 20, não é tão lido no século 21 como deveria. Lástima. Contudo, ainda existem bons editores brasileiros que não se deixam abalar por números. Prova disso é o excelente livro de ensaios Velázquez, que a editora WMF Martins Fontes coloca no mercado com tradução e organização da pintora Célia Euvaldo.
Caso intrigante dentro da história da arte, Velázquez (1599-1660) continua a desafiar contemporâneos – como mostra um livro a ele dedicado pelo brasileiro Waltercio Caldas, publicado em 1997, que “esvaziou” cerca de 60 telas do pintor, inclusive a mais célebre, Las Meninas (1656), suprimindo do quadro seus personagens, graças à computação gráfica.
Waltercio, ao proceder assim, pretendia examinar a complexidade com que Velázquez estruturava seus quadros. Ortega y Gasset, a esse respeito, diz que existiam dois Velázquez, um que organizava o fundo da tela e outro que pintava as figuras. Waltercio ousou discordar. Para ele, tudo em sua obra é igualmente estruturado, tudo é figura, pois o pintor espanhol, adiante do seu tempo, cria uma espécie de consciência nesse espaço pictórico, segundo Waltercio. E não é por acaso que seus personagens olham para fora do quadro ou os espelhos, como em Las Meninas, colocam o espectador dentro do quadro, observou o artista brasileiro.
A escassez de dados biográficos sobre Velázquez não permite saber se sua percepção do espaço pictórico era guiada por esse mesmo olhar que orienta Waltercio. Pode ser – é difícil – que Velázquez tivesse superado todas as lições sobre composição e luz de Caravaggio e Ticiano, desejando, então, criar uma dimensão espacial muito próxima daquela que séculos mais tarde Lucio Fontana forjaria com suas incisões na tela, abolindo o ilusionismo na pintura. Mas, como se disse, tudo na vida de Velázquez é mistério. Ou falta dele, a crer na descrição de Ortega y Gasset.
O filósofo argumenta que o pouco que se sabe da vida de Velázquez é o suficiente para entender a razão de sua pintura ser o oposto de sua apatia e desinteresse pelo mundo real. Basta saber, segundo Ortega y Gasset, que, no ano de 1623, aos 24 anos, tornou-se pintor oficial da corte de Filipe IV. Velázquez viveu toda a sua vida no palácio, onde morreu em 1660, aos 61 anos. Lá fez sua moradia e ateliê. Não passou por dificuldades financeiras, não teve maiores problemas, mas sua cabeça estava a léguas de distância daquele palácio – fora do provincianismo da vida espanhola daquele tempo, segundo o autor.
O filósofo escreve sobre o encontro de Velázquez com o pintor flamengo Rubens (1577-1640), que teria “facilitado sua libertação íntima.” Rubens foi o primeiro grande artista europeu com quem ele entrou em contato, acompanhando-o durante os oito meses de sua permanência em Madri. Ortega y Gasset não trata da relação com outros pintores, nem mesmo seus discípulos (Juan Martínez del Mazo e Juan de Pareja). Diz apenas que Velázquez se desinteressava de algumas pinturas suas, deixando-as inacabadas, ainda que pintasse com rapidez e lhe sobrasse tempo para aceitar encomendas.
Velázquez tinha mesmo nostalgia da Itália, do moderno estilo de vida dos artistas italianos, nada provincianos – e a pintura espanhola, de acordo com o filósofo, seria a “modulação produzida na Espanha de uma realidade autárquica que é a pintura italiana”. Velázquez perseguia, portanto, uma pintura com base no real, sem sombra do anedótico, em que o pintor, embora presente (e a presença de Velázquez é real em Las Meninas), se faz ausente. Tem nessa atitude um comportamento moderno, de distanciamento brechtiano, obrigando o espectador a ficar a sós com aqueles reis, príncipes, bufões da corte e anões que pinta. E como consegue isso? Fazendo com que seus personagens não expressem nenhuma emoção, analisa Ortega y Gasset.
Outra estratégia, ainda de acordo com o filósofo: ele converte o cotidiano em surpresa permanente. Embora pintando o real e reproduzindo com fidelidade a forma dos objetos, Velázquez esforçou-se para “eliminar a representação do volume sólido, isto é, de tudo que na imagem é alusão a dados táteis”. O realismo do sevilhano, conclui o autor, “não passa de uma variedade do irrealismo essencial a toda grande arte”.