Filo celebra 40 anos com parcerias

Maturidade é revelada na edição que terminou no domingo pela qualidade das montagens e pela ampliação da circulação

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Por Beth Néspoli
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Na quinta-feira, a reportagem do Estado flagrou dois senhores de cabeça branca em tranqüilo bate-papo numa das mesas do calçadão que atravessa o centro da cidade paranaense de Londrina. À primeira vista, dois aposentados tomando um café no fim da tarde. Mas eram nada menos do que os diretores italianos Eugenio Barba, fundador do chamado teatro antropológico e da companhia Odin Teatret, na Dinamarca, e Roberto Bacci, encenador da Cia. Laboratório de Pontedera (Itália), que trouxera ao Festival de Londrina (Filo) Amleto, uma original montagem de Hamlet. Naquele mesmo calçadão, em outros tempos, Kazuo Ohno fez suas performances. Cícera, manicure de um salão de beleza no calçadão, parece ter-se acostumado ao trânsito de artistas durante a mostra. ''Esses dias vi várias vezes o Jamanta passar (nome de um personagem de novela interpretado pelo brasileiro Cacá Carvalho que atua em ''Pontedera'' e acompanha Bacci) e sei que ele está aqui por causa do Filo'', comenta, usando com intimidade de londrinense a sigla da mostra. Na tarde seguinte, de sexta, a tranqüilidade da conversa dos diretores teria sido quebrada pela passagem do Filo e Folia, um ruidoso cortejo, com banda, roda de capoeira, malabaristas e cuspidores de fogo com suas tochas acesas. A parada era parte da programação de rua do Filo e atravessou todo o calçadão até a concha acústica e foi acompanhada desde o início por duas animadas senhoras. Passaram por acaso e seguiram a música? ''De jeito nenhum, eu vim para isso'', diz Diva Buki, cabeleireira aposentada, mostrando o folheto que traz a grade completa da programação do Filo 2008. ''Eu estou acompanhando toda a programação de rua e comprei ingressos para O Oratório de Aurélia (espetáculo onírico de Victoria Chaplin) e O Natimorto (encenação de Mário Bortolotto para o livro do quadrinista Lourenço Mutarelli). Gostei muito das duas'', diz Diva. Não foi fácil comprar os ingressos, esgotados em poucos horas na bilheteria, muito antes do início da mostra. Para a Rua Diva arrastou a amiga Ruth Amorim. ''Ficar em casa embolora.'' O Filo nasceu no ano mítico de 1968 como um festival universitário de resistência num momento de fechamento político e cultural. Sob o comando da diretora Nitis Jacon e dos atores do grupo Proteu passou por transformações, se internacionalizou, e celebrou 40 anos com uma edição cuja programação terminou ontem, mas ainda se desdobra por outras cidades. Três destaques da mostra de Londrina serão apresentados em breve em diferentes unidades do Sesc em São Paulo. Amleto, na Carne o Silêncio, a montagem de Hamlet dirigida por Bacci, fará quatro apresentações no Sesc Santana, a partir de quinta-feira, e os ingressos já estão à venda. E a partir de sexta começam a ser vendidas as entradas para os espetáculos Fragmentos e O Sonho de Andersen. O primeiro, dirigido por Peter Brook, com três atores, reúne quatro peças curtas de Beckett que tem como originalidade acentuado tom cômico e a ruptura com as indicações do autor - em vez de voz off e uma mulher muda numa cadeira de balanço, por exemplo, a atriz fala e move-se na peça Balanço. Barba lembrou o título de um poema de Carlos Drummond, Claro Enigma, para definir seu espetáculo onírico O Sonho de Andersen que tenta dar conta do paradoxo que é a riqueza cultural resultante da escravidão africana e usa ainda como fonte de inspiração a biografia do escritor Hans Christian Andersen. As montagens de Brook e Barba serão apresentadas respectivamente nas unidades Pinheiros e Santana do Sesc-São Paulo e os ingressos começam a ser vendidos na sexta, dia 27. Se O Oratório de Aurélia já passou por São Paulo, outro espetáculo encenado na mesma chave lúdica, La Fin de Terres, da companhia francesa Philippe Genty será apresentado amanhã e quinta no Sesc Vila Mariana. Recursos como o teatro de sombras, bonecos e truques circenses fazem atores e objetos desapareceram e surgirem como por encanto. Quem gostou de O Oratório de Aurélia deve ser ainda mais provocado por La Fin de Terres, que trabalha com muito humor, cria imagens expressivas e explora temas fortes como numa cena de castração e a opressão numa relação afetiva. Não passa por São Paulo, mas será um dos espetáculos de abertura da 9ª edição do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (MG), que começa na quinta a montagem da República Checa Escravo, a Canção de Um Imigrante, cuja vibração conquistou a platéia em Londrina. Como sugere o título, a imigração - o tráfico humano é um grave problema mundial - inspira a montagem que o diretor Viliam Docolomansky prefere chamar de performance. No palco, o cenário remete a um só tempo a um contêiner e a um desses caminhões baú que transportam - e também matam por sufocamento - imigrantes clandestinos na travessia de fronteiras. O espetáculo tem como base sonora canções tradicionais eslavas e aproxima-se da linguagem do teatro-dança. A saga do imigrante é explorada por meio de imagens criadas sobretudo pelo corpo dos atores. Por exemplo, numa delas um casal se abraça fortemente. Subitamente, a mulher se esquiva dos braços do homem que os mantém na mesma posição, num abraço vazio e solitário. No Filo, o espetáculo foi exibido sem legendas, talvez porque o grupo as considere dispensáveis. Vez por outras, os atores falavam em inglês o que ampliava, para quem entendia, a compreensão de cenas como a rejeição de todos para com o imigrante que retorna à sua terra. ''Há muitos motivos para migrar. O ser humano cultiva esse sonho do Eldorado. Parece sempre que existe um lugar distante onde a vida pode ser melhor'', comenta o diretor Viliam em entrevista coletiva antes da apresentação. ''A imagem que o imigrante guarda de sua terra é a do dia da partida. De alguma forma ele espera que tudo fique congelado até sua volta, mas não é o que ocorre. Exploramos esse aspecto, de quem volta, não encontra mais o seu lugar de origem e passa a ser estrangeiro também na sua terra.'' A exaustão física do imigrante depois de muitas tentativas de readaptação é a cena que fica nas retinas no desfecho de Sclavi. Nesta edição de celebração de 40 anos não faltaram grandes espetáculos nacionais, como o musical Besouro Cordão-de-Ouro e o experimental Deve Haver Algum Sentido em Mim Que Basta. Vale destacar a ampliação de parcerias com outras instituições, como o Sesc-São Paulo e o Centro Cultural Banco do Brasil. Tal prática, por reduzir custos, estende o corredor de circulação. Público e teatro saem ganhando. A repórter viajou a convite da organização do festival

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