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Festival cearense debate rumos da fotografia

Encontro discutiu as transformações de um mundo que não admite mais só a estética

Por Simonetta Persischetti
Atualização:

A imagem – no seu aspecto mais amplo – a cada dia vem ocupando mais espaço para ser vetor de discussão e reflexão para apontar caminhos para o que irá se desenvolver nos próximos anos tanto no Brasil como no mundo. A fotografia, em particular, volta novamente a se preocupar com o documental e com sua posição política: não uma colocação partidária, mas uma forma de apresentar diversas formas de cidadania, de respeito. Uma maneira de a arte repensar seu papel e se tornar cada vez mais crítica, num mundo que parece cada vez mais plano.

A potência e a força da imagem foi o tema do Fotofestival Solar que aconteceu em Fortaleza no começo de dezembro, quando fotógrafos, cineastas e escritores, sul-americanos, sob o tema Abismo se encontraram e tentaram analisar, compreender o momento atual e se colocar diante de um futuro, que obviamente, não sabemos qual será nem para onde estamos nos encaminhando. 

Adenor Gondin: a autoimagem funciona como autoconhecimento Foto: Adenor Gondin

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Realizado pelo Instituto da Fotografia (Ifoto) em parceria com a Secretaria de Cultura do Ceará e com o Instituto Dragão do Mar, o Solar, “buscou se posicionar como uma plataforma de pensamento e virada política através das artes”, conforme explicita em seu site.

Para Tiago Santana, fotógrafo, idealizador e diretor artístico do festival, “desde o início, queríamos um festival que não ficasse alheio ao que estava acontecendo no País e no mundo. Não poderíamos ficar fora desta sintonia com o que está acontecendo. O festival que se pretende bienal inicia como forma de troca com várias linguagens, como o cinema e a literatura para repensar o momento de transformação pelo qual estamos passando. 

Mas a síntese deste pensamento fica por conta da exposição central do festival, Terra em Transe, com a curadoria de Diógenes Moura. Cinquenta e três fotógrafos de todo o Brasil e das mais diversas estéticas ocupam o espaço do Dragão do Mar, nos apresentando um Brasil cru, direto, que perpassa nosso cotidiano e toca em temáticas necessárias como o preconceito, a violência, a paixão, o amor. Não são imagens contemplativas, mas fotos que nos convidam a falar, a resistir, porque nos incomodam.

São 450 imagens que nos descrevem – claro que sob a ótica do curador – momentos nos quais a imagem não é ilustração, não afirma nem nega nada, mas se coloca de forma potente diante de nós. Uma exposição forte que apresenta diversas regiões do Brasil e apresenta também jovens olhares. Não à toa toma emprestado o título do filme roteirizado e dirigido por Glauber Rocha, lançado no final dos anos 1960: “Quis fazer uma grande narrativa de um Brasil que vivi e experienciei. Um Brasil que conheci criança e um País que conheço como curador e escritor. Um Brasil que eu frequento. A exposição Terra em Transe é o resultado desta vivência, desta existência”. Um panorama do Brasil real. 

Uma exposição que se desenvolve em camadas que apresentam imagens do início do século XX atravessam décadas até chegar aos nossos dias num percurso também político onde a imagem prescinde da palavra, onde se oferece a quem quer desvendá-la: “A fotografia documental sempre foi muito forte no Brasil. Pensamos então em reforçar esta sua característica para repensar o momento atual. Uma exposição seminal criada por meio da leitura poética de Diógenes”, reflete Ângela Berlinde, consultora artística do Festival. 

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A criação de uma ideia de Brasil pela imagem. A exposição que abre com uma fotografia do Museu Nacional sendo devastado pelas chamas, uma metáfora direta sobre o descaso com nossa história, nossa memória e se desenvolve oferecendo a cada fotógrafo uma micro exposição, onde as imagens conversam umas com as outras, criando novas narrativas, apresentando diferentes pontos de vistas. Os movimentos sociais dos anos 1960 conversam com os do século 21. A violência urbana discorre com a violência do campo, com os desastres como o de Mariana, com as chacinas nas periferias das cidades. As manifestações religiosas do Nordeste se espelham nas religiões afro-gaúchas.

Uma exposição onde estética e política não são antagônicas, pelo contrário ela se firmam e reafirmam: “Não existe uma divisão estética entre as imagens, é fotografia, é existência, imagem e abandono, isso para mim é Terra em Transe”, reflete Diogenes.

Sob o tema Miragem, fotógrafos cearenses ou que moram no Ceará há mais de dois anos foram desafiados por meio de uma convocatória a enviarem suas imagens a fim de mapear a produção contemporânea da região. Vinte e nove autores foram selecionados pela jornalista e curadora Iana Soares: “Fragmentos recolhidos por quem tentou olhar mais de uma vez aquilo que viu”.

As imagens selecionadas, assim como as da exposição principal, Terra em Transe, não se dividem por estéticas ou linguagens, mas todas respondem ao apelo maior do festival: são projetos que refletem sobre questões políticas e poéticas, revelando histórias visuais que passam tanto pelas micronarrativas como pelas amplas construções sobre as relações sociais em diferentes contextos afetivos, culturais e tecnológicos”, explica o catálogo da exposição.

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Micronarrativas e micro histórias tem se tornado a tônica da fotografia contemporânea que não precisa mais ser épica, mas pode por meio de um detalhe dar conta de toda um situação. Livre de amarras conceituais a fotografia contemporânea se coloca opinativa e afirmativa frente ao que quer narrar.

Um desafio ao olhar. Uma miragem como bem definiu a curadora ou como afirma: “uma miragem não é uma alucinação de quem vê, esclarecem os físicos. Tecnicamente, é um fenômeno ótico: o desvio dos raios do sol em contato com o mundo produz uma imagem. Nesta exposição, a miragem não se afasta da existência. É viva. Há quem faça dela, um jogo de mil faces, um ensaio para o futuro. Há quem veja e desconfie, Haverá sempre quem resista em cada gesto e invenção”

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