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Feliz Natal

Por Roberto da Matta
Atualização:

Que vocês, queridos leitores, possam desfrutar um Feliz Natal, apesar de terem assistido na televisão e visto nos jornais e revistas o saque imoral, perverso, sorrateiro, impensável e inclassificável das doações aos flagelados das enchentes de Santa Catarina por alguns dos seus responsáveis. Roubar é um crime, mas saquear vítimas é como abusar de uma criança. É algo perverso e covarde. Mais: roubar doações destinadas aos atingidos pela fúria da natureza é simplesmente impensável. Até um bandido profissional, nutrido na marginalidade, eventualmente escolhe suas vítimas. Agora, ver voluntários roubando as doações é inclassificável. Roubar as vítimas mostra a força do "tirar" malandro como um valor. Como um pólo de ordenação social. Na mais ativa corrupção que tão bem conhecemos e que vai, como a crise, de vento em popa, agora com euros na cueca; rouba-se porque os recursos, sendo de todos, continuam a não ser de ninguém. E não tendo dono, são teoricamente do "governo" mas, na prática, pertencem a quem chega primeiro. No Brasil, isso ocorre em todo espaço igualitário, como o trânsito. E fica mais gostoso ainda quanto mais inchamos o Estado como agência exclusiva de gerenciamento nacional, que faz com que percamos de vista a cara, a cor e o sofrimento daqueles para os quais os recursos são destinados. Sobretudo quando não sabemos claramente a quem cabe o gerenciamento de tal ou qual recurso. O gigantismo estatal, tolhido por leis obsoletas, deixa tudo passar por suas malhas: a ineficiência, a irresponsabilidade, o desperdício e a mais aberta desonestidade. Roubar descaradamente doações é, infelizmente, apenas uma nota de rodapé num assalto generalizado e sistemático a todos os recursos públicos. Ficamos chocados menos pela flagrante desonestidade e muito mais pela naturalidade do gesto vil que, sendo rotineiro, é marcado pelo conformismo e pela indiferença. O desvio (dou emprego somente a correligionários); o desperdício (fiz um hospital universitário tão vultoso que não tenho como sustentá-lo); a impossibilidade de criminalizar e punir (somos dez guardas florestais para meio milhão de quilômetros de mata); a impossibilidade de controle (é normal que, num programa de tamanha grandeza, jamais visto neste país, existam desvios); a ausência do reconhecimento de limites (isso sempre foi feito, nós - por falta de prática - apenas fizemos de modo mais ordenado); a ignorância dos elos entre meios e fins (gasta-se mais com o ensino superior do que com o ensino básico, mas a "educação" é prioritária) são fenômenos do mesmo saco. Todos têm um elo direto com uma brutal impessoalidade: com a ausência de relações sociais concretas entre as políticas e os seus destinatários. A impessoalidade do Estado faz desaparecer a pessoa numa sociedade constituída mais por casas e famílias do que por indivíduos-cidadãos. Ela segrega e torna invisível a humanidade de quem está fora do circulo de relações. Um dos dados mais visíveis da ineficiência, do descaso e da corrupção pública nos países com sistemas sociais personalistas, familistas e tribais é precisamente essa desumanização dos que não têm elos conosco, por contraste com a hiper-humanização (que conduz a uma imoral condescendência), daqueles que pertencem ao nosso partido, aldeia, família ou círculo de relações. O anonimato produz essa chocante ausência de honestidade. Ele torna casual o roubo das doações porque elas se destinam a Deus sabe quem... O roubo das doações é uma nota (ou, quem sabe?, o começo de um epílogo) num grosso livro no qual os administradores públicos se escondem na aparelhagem todo-poderosa de um Estado imutável, congelado em si mesmo e sem coração. Um Estado que engloba a sociedade e que tem as razões que todos conhecemos: aristocratizar seus eventuais donos, enricar seus gerentes, transformar seus usurpadores em heróis, desculpar seus gestores, perdoar seus assaltantes. Mas como Papai Noel não existe e tudo é possível, testemunhamos também o caso do "seu" Daniel que, mesmo perdendo a casa, o ganha-pão, e - valha-me Deus! - quatro netos e um irmão, não perdeu sua identidade de homem honesto e devolveu R$ 20 mil encontrados por sua netinha num casaco doado à sua família. Esse é o melhor presente de Natal que poderíamos receber. No gesto digno de um Rei Mago, "seu" Daniel mostra como é furada a nossa "teoria unificada do social". Aí está uma família com todas as justificativas para ''ficar'' com o dinheiro, tal como os voluntários teriam a obrigação do zelo e da honestidade relativamente às doações. Mas - eis o presente dos Reis Magos - o gesto vil pode surgir em meio à generosidade; e o bem pode nascer ao lado da dor indizível e perda incomensurável. É a velha imperfeição humana que faz ultrapassar as necessidades, desobedecer à lógica da utilidade e, apesar de tudo, dar luz ao honesto em nome do humano. Tal gesto fica ao largo das reduções ideológicas tão ao gosto de nossa elite que condena o mundo, só porque pode aproveitá-lo no que ele tem de melhor. Feliz Natal!

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