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Família, como você nunca viu na tela

O filme filipino Serbis, de Brillante Mendoza, usa cinema pornô decadente para subverter pressupostos estéticos e morais

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Na cena mais desconcertante de Serbis, de Brillante Mendoza, uma cabra invade o cinema pornô. Acendem-se as luzes e os raros espectadores da sala decadente interrompem suas atividades, que não são exatamente as de assistir ao filme. Na série de filmes sobre família da 32ª Mostra Internacional de Cinema, o filipino talvez seja o mais inusitado de todos. Existem filmes sobre família do Brasil (A Festa da Menina Morta e Feliz Natal, de Matheus Nachtergaele e Selton Mello), da França (Horas de Verão e Um Conto de Natal, de Olivier Assayas e Arnaud Desplechin), da Turquia (Three Monkeys, de Nuri Bilge Ceylan) e dos EUA (O Casamento de Rachel, de Jonathan Demme). Nenhum se assemelha a Serbis, que quer dizer justamente ?Serviço?. O filme passa-se neste cinema de Manila em que os freqüentadores vêm atrás de ?serviços? sexuais. Mas este é só o cenário. O filme é sobre família, e o cinema, aliás, chama-se Family. Disse o diretor em Cannes que não precisou rebatizar a sala, porque ela já se chamava assim. O Family pertence à família Pineda, que não apenas administra o negócio como habita uma parte mais reservada do conjunto. Para quem gosta de transgressão, Serbis é o máximo - bem, talvez seja até um pouco excessivo. O filme tem sexo explícito, mas ele não é o objetivo em si, mas um dos componentes da equação. Mendoza quer falar sobre a ambigüidade da moral, que tem dois pesos e medidas. A matriarca da família Pineda conduz com mão de ferro filhas, filhos, netos e agregados. Dado o cenário, que pressupõe degradação moral, você poderia acreditar no ?vale tudo? como máxima familiar. A matriarca é tão intransigente que move um interminável processo contra o ex-marido, a quem espera ver condenado por bigamia. Apesar de todas as diferenças entre os dois filmes, se Serbis tem alguma coisa a ver é com A Festa da Menina Morta. O filme de Matheus Nachtergaele lança seus personagens desgarrados nos confins da Amazônia, num lugarejo que ainda faz parte da selva, invadido pela natureza exuberante. O de Mendoza projeta os dele no caos urbano, e os sons da cidade com freqüência invadem a velha sala, que vira metáfora de tudo - da família, do sistema, do próprio cinema. Não é para todos os gostos, e muito menos para espectadores que reivindicam elegância e bom gosto. Mas é visceral, como talvez fosse o udigrudi, se o cinema da Boca do Lixo tivesse sobrevivido ao transe da cracolândia, em São Paulo. Brillante Mendoza é ele próprio uma figura. Nascido em San Fernando, nas Filipinas, em 1960, ele parece ter menos do que os seus 48 anos. Para quem é tão provocativo e transgressor, é singularmente calmo e controlado. Um bom terapeuta diria que a psicanálise selvagem que ele faz na arte termina por liberá-lo na vida. A questão, por sinal, talvez seja justamente esta - se Serbis, afinal de contas, é arte ou não. Thierry Fremaux, diretor artístico do Festival de Cannes, defendeu com paixão a inclusão do filme na mostra competitiva de 2008. O júri presidido por Sean Penn, talvez assustado, não atribuiu nada ao filme. Os críticos dividiram-se radicalmente - houve desde a bola preta até o ?palmarès? (a Palma de Ouro) no quadro de cotações do festival. Filipinas é um país estranho no imaginário ocidental. Quem quer que tenha visto as imagens da Semana Santa em Manila com certeza já se chocou de ver aqueles fiéis que reproduzem com pregos de verdade o sofrimento de Cristo na cruz. Francis Ford Coppola filmou Apocalypse Now nas Filipinas e Elaine Showalter faz, em Anarquia Sexual, um relato impressionante de como o filme escapou ao controle do grande diretor - de como ele teria enlouquecido. Criaram-se, nos bastidores, linhas de atendimento a todas as perversões sexuais da equipe, incluindo o fornecimento de meninos e meninas para práticas sexuais. Isso não tem a ver especificamente com Serbis, mas pode ajudar a entender um pouco mais este filme tão fora dos eixos. Serviço Serbis Cinesesc - Hoje, 13h30

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