Falta à dança o reconhecimento como uma atividade produtiva

Apenas assim as políticas públicas para o setor deixarão de funcionar como propostas paliativas

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Por Helena Katz
Atualização:

2008 pode entrar para a história como o ano em que a quantidade de espetáculos de dança foi de tal monta, na cidade de São Paulo, que inviabilizou que cada um deles pudesse ser visto por quem pretendesse acompanhar o setor. Todavia, esse índice inflado não pede um brinde, como poderia sugerir algum leitor mais entusiasmado, mas sim, uma conversa sobre o seu significado. Aquele binômio, velho conhecido, que associa quantidade e qualidade (é a quantidade que faz nascer a qualidade), no caso da dança, para funcionar, precisa de clareza para saber onde a quantidade deve ser aplicada. Depois de criada, a obra precisa circular. Não somente para tornar a equação custo/benefício menos perdulária ao atingir um público maior, como também para conseguir chegar à sua melhor forma. Para potencializar a qualidade, o contato com o público é indispensável, não basta uma grande quantidade de ensaios. Em dança, quantidade produz qualidade quando se refere ao número de apresentações da obra. Mas quando a quantidade passa a ser aplicada ao número de obras criadas, sucede o que se viu em 2008: muitos espetáculos e pouca qualidade nos palcos. Numa situação assim, não é possível formar público, nem mesmo com o equívoco do ingresso gratuito. Ingressos devem ser subsidiados com verba pública para que seu custo seja acessível, mas habituar quem vive na sociedade de consumo que não é necessário pagar para assistir a dança, comunica que quem produz não precisa ser remunerado por quem consome. A fartura de ofertas em 2008 tem na Lei de Fomento à Dança (14.071, de 18/10/2005) um de seus eixos principais. Instrumento indispensável enquanto não existir um verdadeiro programa de políticas públicas para todas as linguagens artísticas, a lei foi uma importante conquista do movimento Mobilização Dança e já realizou cinco seleções, contemplando 44 grupos. A quantidade também pauta a Lei de Fomento à Dança. Para que aumente o número de beneficiados (qual governo não acaricia índices gordos em seus balanços?), os projetos aprovados sofrem cortes nos seus orçamentos. E cortes, evidentemente, trazem consequências. Além disso, depois de três anos de existência, parece ainda não existir uma clareza sobre o papel que uma Lei de Fomento deve desempenhar. Quem deve ser fomentado e por quanto tempo? De que adianta selecionar um projeto de criação se, em seguida, ele não é selecionado para circular? Para responder com competência, seria necessário tratar a dança como um setor produtivo e, para tal, faltam dados. Não somente sobre a dança contemporânea da cidade de São Paulo, que é o eixo da Lei de Fomento, mas sobre toda a dança que acontece no Brasil. De novo, volta a quantidade: quantos grupos existem na cidade? Quantos solistas? Quantos são produtivos? Quantos improdutivos? Quantas escolas? Quantos alunos? Quantos professores? Quantos bailarinos empregados? Quantos desempregados? Quantos trabalham na informalidade? Quantos projetos sociais usam a dança? Sem conhecer o universo ao qual se refere, não se traça o diagnóstico capaz de fazê-lo avançar. E, se isso ocorre no Município, a situação é muito mais alarmante em termos nacionais e, nessa esfera, por razões inversas, ou seja, justamente porque dados começam a ser produzidos. Na primeira edição do Plano Nacional de Cultura, ainda sob a gestão do ministro Gilberto Gil, a dança aparece no gráfico da página 30 como a segunda atividade praticada no Brasil, presente em 56,1% dos municípios brasileiros. Fica atrás somente do artesanato (64,3%) e, nessa listagem, o teatro, por exemplo, ocupa o oitavo lugar (39,9%). Outro número merece destaque. Os festivais apresentam-se como a mais dinâmica forma de difusão cultural no País: 49% das cidades contam com festival de cultura popular, 39% com festival de música, 36% com festival de dança, 26% com festival de teatro e 10% com festival de cinema. E aqui se repete a situação: a dança está em 3º lugar, mas a essa honrosa classificação não corresponde uma projeção equivalente na sociedade. Mas que dança é essa? O que está agregado debaixo desse nome? O próprio MinC parece se dar conta do perigo. Na página 33 do seu Desafios para as Políticas Culturais (2008), no qual estão publicadas as cifras acima, encontra-se o texto que diz: "A rica oferta da produção brasileira na área de dança está restrita a uma pequena parcela da população... A dependência de modelos de financiamento baseados em mecanismos de renúncia fiscal não superou ainda o problema da exclusão de grande parte das manifestações coreográficas do acesso às fontes de financiamento e oportunidades de difusão e preservação." Precisamos de dados para um correto diagnóstico, mas antes de buscar o refinamento dos índices com que hoje trabalha o Ministério da Cultura, vale questionar por que eles não são traduzidos na distribuição do seu orçamento, como sucede no caso da dança que, mesmo com o aumento de recursos para a cultura, não viu crescer a parte que deveria lhe caber. Embora esteja solidamente estabelecida, a distribuição de dinheiro via editais que tenta se disfarçar em programa de política pública se assenta no princípio da exclusão pela inclusão. Segundo o filósofo italiano Agamben, o sistema funciona assim: é necessário incluir uns para que a maioria permaneça excluída, em um rodízio que anestesia os excluídos com a esperança de que serão os próximos a se salvar. O cultivo dessa esperança imobiliza a todos em uma dependência perversa, que se transforma em norma de sobrevivência. A leitura dos escritos de Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia de 1998, nos faz entender melhor o borbulhar da situação em que a dança se encontra. Para além da inequivalência entre quantidade e qualidade, compreende-se que a prática da desigualdade e a falta de consciência política são os ingredientes que a mantêm como periférica na distribuição do bolo orçamentário. Mas é o próprio Sen que nos faz entender que a liberdade não é o que vem depois do desenvolvimento. Desenvolvimento Como Liberdade (1999), além de título de um de seus livros, é no que a dança precisa investir. Se medidas puramente econômicas contra a desigualdade não conseguem expressar a dimensão social dessa desigualdade, a opção é tratar de construir autonomia. No momento da consolidação da dança como campo, tal autonomia passa pela necessidade de reconhecer a dança como atividade econômica. A economia da dança vai colaborar para que as políticas públicas para a área deixem de ser ações bem intencionadas que, na verdade, funcionam como propostas paliativas que, por vezes, promovem consequências danosas.

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