Expresso Oriente

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Por Daniel Piza
Atualização:

A China diz que há exatamente cem anos expressou seu desejo de organizar uma Olimpíada, mas que tenha conseguido no atual momento histórico não deixa de ser metafórico. A Olimpíada remete ao nascedouro grego da civilização ocidental e foi retomada na era moderna com o famoso dito do barão de Coupertin de que o importante é competir. De Aristóteles para Confúcio, a China parece querer se integrar cada vez mais ao mundo globalizado e, ao mesmo tempo, enviar o recado de que ela pode competir como ninguém. Pequim, onde estou desde o dia 2, é uma capital de grandes avenidas, arranha-céus e vida noturna como os de qualquer outra metrópole moderna. E em transformação muito mais acelerada. O mundo se inquieta não apenas por motivos saudáveis, como direitos humanos, responsabilidade ambiental e liberdade de expressão, mas também porque se trata de uma potência em ascensão, que cresce com rapidez sem abrir mão de valores próprios - e não me refiro apenas àqueles que não toleramos. A grande preocupação dos chineses é não se despedaçar como a antiga União Soviética, e quando lemos clássicos como Em Busca da China Moderna, de Jonathan Spence, fica claro que o temor tem fundamento. Chineses aqui dizem que o país se dividiria em pelo menos três regiões se não tivesse um governo central forte; para eles, "forte" quer dizer autoritário, sem pluripartidarismo e sem mídia livre. Não se pode esquecer, no entanto, que o governo chinês já foi muito mais tirânico, nos tempos do Império e nos de Mao, por baixo de toda a mitologia da "harmonia" que vemos na arquitetura da Cidade Proibida. A opção pela abertura gradual tem lá sua razão de ser. Minha sensação é a de que eles sabem que não podem nadar contra a corrente da história. Alguns sites são bloqueados, mas os chineses usam internet e MSN o tempo todo; filmes têm trechos censurados, mas eles vêem na íntegra em DVDs da infinita pirataria; os jovens aprendem inglês; o mercado multiplica as ofertas de consumo; camadas sociais surgem. Durante a Olimpíada, a venda de jornais estrangeiros foi liberada, e para ela arquitetos de primeiro time foram convidados a fazer belíssimas construções. Mas eles tão cedo não vão abrir mão daquelas políticas autoritárias ou do controle de natalidade e residência, e culturalmente sabem que têm o apoio da maioria da população. Uma ruptura com o passado não está no programa. E, como dão muita ênfase ao estudo e ao trabalho, conseguem adicionar combustível a tudo isso, caminhando para se tornar o que pode ser uma espécie de Japão gigante. Cito o Japão porque é difícil não pensar nele enquanto visito a China. Muito do que associamos à cultura japonesa tem origem chinesa: caligrafia, artesanato, budismo, artes marciais, palitos para comer, quimonos, teatro, etc. Não por acaso, Ezra Pound e Octavio Paz eram tão fascinados por ela. No entanto, a começar pelo idioma e pela culinária, o Japão transformou tudo à sua maneira, obtendo em alguns casos um refinamento, um bom gosto, que não se vê muito na China - que é maximalista, não minimalista. Em resposta, chineses dizem que os japoneses, como seu território, pensam pequeno... Aqui tudo é exagerado, hiperbólico, exuberante; sempre é o maior, o primeiro (até a pizza eles informam ter criado), o melhor. Mas países grandes também têm problemas grandes, por isso fica difícil imaginar um país com 1,3 bilhão de habitantes com nível médio de qualidade de vida comparável ao do Japão e da Europa. Até porque, segundo os ambientalistas, a conta não fecha. Talvez não demore muito para que a cultura chinesa moderna produza artes e idéias mais relevantes mundialmente. Quase todos os nomes chineses que lembramos são muito antigos, como os pensadores Confúcio, Sun Tzu e Lao Tsé ou os poetas como Li Bai (ou Li Tai Po). Na era moderna são menos numerosos os arquitetos, os ficcionistas (embora eu goste um pouco de Viver, de Yu Hua) ou os ensaístas de primeiro time. A exceção é o cinema, que dos anos 1990 para cá revelou cineastas como Zhang Yimou e Chen Kaige. Já a pintura, que visitei extensamente numa região de galpões de fábricas convertidos em galerias, conhecido como 798, ainda se prende a um pop realista, que tenta fazer ironia política e acaba caindo no kitsch, ainda que haja talentos como Ren Xiaolin e Mao Ya. Aos poucos o país entra no mapa-múndi cultural. O presidente Lula disse que, se o século 20 foi americano, o século 21 seria brasileiro. Por enquanto, parece que será chinês. Ou então não haverá mais "donos" de séculos, simplismo que não se encaixa nestes tempos complexos de globalização. E vale sempre lembrar que a decadência dos EUA vem sendo cantada em prosa e verso há muito tempo, e que Gore Vidal disse nos anos 80 que o país se tornaria shopping center de japoneses. Não se tornou. A China está muito longe de exercer influência como os EUA exerceram nos mais diversos hábitos e valores da modernidade. Ela mesma adere a alguns deles no momento. Por falar no idioma, recebi algumas "aulas" informais que me puseram a pensar sobre as famosas teses de Ernst Fenollosa, um sinólogo que muito influenciou Pound e, por tabela, os concretistas brasileiros. Fenollosa dizia que o mandarim (ou chinês, como eles mesmos se referem) é uma língua especial porque dotada de visualidade, porque nela o desenho da letra e o significado da palavra não estão distantes como no alfabeto ocidental. Pound se inspirou nisso para fazer sua prose kinema, sua poesia feita de uma prosa cinematográfica, de uma colagem sonora de imagens diretas. E os concretistas foram além, defendendo por aí uma poesia "icônica", com a intenção nada modesta de romper com a lógica aristotélica da arte ocidental (sic). Os ideogramas chineses, porém, têm outros quatro níveis além desse primeiro, mais diretamente visual. São combinações muito sofisticadas que envolvem mediações culturais, pois dependem do contexto da frase e dos tons com que serão lidos; termos abstratos se explicam por conceitos e parábolas historicamente arraigados. Há uma tremenda carga simbólica aí, e não apenas o desenhar de objetos. Mas chega, pois dizem os chineses que uma pessoa morre sem ter aprendido o idioma ainda, de tão difícil que é. Eu só queria lembrar que o Ocidente volta e meia cometeu reducionismo sobre o que é "Oriente", mitificando seus apelos como seus defeitos. Nesta mesma Olimpíada, em pleno 2008, quase só vimos e lemos clichês sobre a China, esse povo que almoça escorpião e janta poluição... E que enriquece de um modo que o resto do mundo inveja. UMA LÁGRIMA Para Alexandr Soljenitsin, morto aos 89 numa semana em que o mundo debateu temas como a repressão na China. Ele pode não ter sido um grande escritor, numa pátria que teve Dostoievski, Tolstoi, Gogol, Chekhov, Turgueniev, Bulgakov e tantos mais. Mas Arquipélago Gulag, por ser monumental em sua apuração e intensidade, é um tesouro da humanidade livre, pela maneira como mostrou nos anos 1970 que os campos de concentração não eram apenas acidentes do sistema soviético, mas sua base mais profunda, o medo com que as tiranias se sucedem. Os chineses ainda ignoram o que Mao fez, concordando com Deng Xiaoping que ele acertou em 70%, como se a barbárie - como a da Revolução Cultural - pudesse ser posta de lado numa operação matemática. POR QUE NÃO ME UFANO (1) Me diverti com matérias e comentários a respeito da China por parte de brasileiros que nem se deram ao trabalho de estudar sua história e cultura. Há muitos e gravíssimos problemas na China, mas suas transformações são óbvias. Não à toa, no contraste entre as cidades brasileiras e as chinesas, minha noção de que aqui haveria caos semelhante caiu por terra. Pequim, por exemplo, é uma cidade organizada em termos urbanísticos, com muito mais metrô (feito em ritmo muito mais veloz), verde e limpeza do que São Paulo. Falou-se um monte da poluição, que de fato é grande, mas os rios aqui não fedem como o Pinheiros. E a segurança é incomparável. Como se diz, "primeiro olha teu rabo"... POR QUE NÃO ME UFANO (2) Li as pesquisas sobre o aumento da classe média (de R$ 1.000 a R$ 4.500), que passou a ser maioria no Brasil (51%), mesmo pagando um terço do seu ganho em impostos e um terço em serviços que o Estado não lhe provê com o dinheiro desses impostos. Só não entendo por que se faz tanta festa. Recuperou-se a renda de dez anos atrás, e está claro que por obra do desenvolvimento da sociedade, não de programas assistencialistas. Além disso, muita gente desceu de patamar também, pois os empregos gerados são de qualificação baixa. E um terço da população continua a viver com menos de um salário mínimo. Enquanto isso, a China cresce 10% ao ano, investe pesado em educação e tecnologia e se prepara. O Brasil precisa parar de achar que o futuro já chegou toda vez que há uma boa notícia.

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