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Exposição apresenta trabalhos do modernista Flávio de Carvalho

Pintor desafiou o conservadorismo em suas obras modernas e performances polêmicas

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Mais do que um representante da vanguarda artística brasileira, o arquiteto e artista visual Flávio de Carvalho (1899-1973) foi um modernista de primeira hora – o “antropófago ideal”, segundo Oswald de Andrade – que sempre andou na contramão. Literalmente. Em 1931, parado numa esquina à espera da procissão de Corpus Christi, levou a cabo o que ele classificou de Experiência Número 2: andou na direção contrária aos fiéis, usando um chapéu, atitude claramente desrespeitosa segundo a tradição católica. O resultado, previsível, foi a intervenção da polícia para salvar o artista carioca do linchamento, nascido – ironia – numa cidade chamada Amparo da Barra Mansa. Foi esse transgressor que a Inglaterra acabou de conhecer numa exposição realizada entre abril e maio na Galeria S/2 de Londres e que agora chega a São Paulo em versão maior, na Galeria Almeida & Dale, a partir deste sábado, dia 17.

Desenho sem título feito por Flávio de Carvalho em 1955 Foto: Galeria Almeida & Dale

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Flávio de Carvalho, por causa de seu comportamento sarcástico, sempre foi reduzido a um estereótipo que não condiz com sua estatura – seja como arquiteto ou artista. Passou à história como o primeiro homem a usar uma minissaia no centro de São Paulo, em 1956 (sua Experiência Número 3, a do New Look), isso uma década antes de Mary Quant cunhar o nome da saia cortada acima do joelho, provocando escândalo semelhante na Inglaterra, país onde Flávio estudou e se formou. Ao voltar ao Brasil, em pleno ano da Semana de Arte Moderna, ele já tinha planos de fazer o País ingressar na modernidade mesmo que a fórceps.

Warchavchik (1896-1972) construía a primeira casa modernista em São Paulo quando Flávio de Carvalho apresentou, em 1927, um projeto futurista para o Palácio do Governo, algo tão ousado que poderia ser o cenário do clássico filme Metrópolis, de Fritz Lang, que, aliás, estreou no final daquele mesmo ano no Brasil. Os exemplos da vocação visionária do artista são tantos que as páginas do jornal seriam insuficientes para enumerá-los. Alguns deles estão na exposição, com curadoria de Kiki Mazzucchelli, crítica independente.

Foi a exposição que ela organizou na S/2 londrina que tirou Flávio de Carvalho da obscuridade – as suas contribuições para a história da arte brasileira permanecem, segundo ela, “praticamente invisíveis” fora do País. A mostra destaca, em particular, o trabalho do artista como retratista, que buscou na representação do outro uma forma de traçar um perfil psicológico de seus modelos.

Experiência n.º3, de 1956, em que Flávio de Carvalho caminhou de saia pelo centro de São Paulo Foto: Galeria Almeida & Dale/Arquivo CEDAE-IEL/Unicamp

A exposição dedicada a Flávio de Carvalho, a partir de sábado (17), na Galeria Almeida & Dale, vai ser aberta com uma de suas mais provocativas obras, O Bailado do Deus Morto, espetáculo pioneiro que é considerado pelos historiadores de arte como a primeira peça experimental apresentada no Brasil, em 1933. Ela será recriada por atores do Teatro Oficina, grupo que encenou a peça em 2010, na Bienal de São Paulo. Como sempre, Carvalho, autor da peça, teve como primeiro espectador a polícia: 150 policiais cercaram o prédio onde ela foi exibida. Os atores convidaram os militares a assistir e O Bailado recebeu até elogios do chefe de polícia, mas o Clube dos Artistas Modernos, onde se realizou o espetáculo do Teatro da Experiência criado por Flávio, acabou fechado pelo delegado. Mesmo destino teve sua primeira exposição individual, em 1934, igualmente encerrada pela polícia por “atentado ao pudor”.

Retratos daquela época estão na exposição da Galeria Almeida & Dale, como o de seu amigo Carlos Prado (1908-1992), também pintor e arquiteto com o qual Flávio de Carvalho dividiu ateliê, em 1931. Prado, teórico da arquitetura funcional, era um interlocutor com grande influência sobre o amigo, que não conseguiu realizar mais de dois projetos arquitetônicos: o conjunto das casas modernas da Alameda Lorena (1936/1938) e a casa da fazenda Capuava (1939). Na mostra, há fotos de projetos rejeitados ou que não chegaram a ser concretizados, como o da catedral de São Carlos do Pinhal, de 1969, uma construção piramidal com anjos e madonas emergindo do teto. 

“Como a exposição foi concebida para Londres, ela tem um aspecto quase didático para apresentar a obra de Flávio, que é analisada em três ensaios de Rui Moreira Leite no catálogo da mostra, abordando desde sua relação com a moda ao seu vínculo com o estudo psicanalítico”, diz a curadora Kiki Mazzucchelli.

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Sua pintura expressionista com forte ligação com a estética dadaísta e surrealista tem o propósito de investigar o caráter psicológico de seus retratados. E a exposição traz retratos desde amigos próximos, como os sociólogos Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, até compositores como o russo de origem armênia Aram Khachaturian (1903-1978), que Kubrick promoveu ao usar excertos de sua Suíte Gayane em 2001: Uma Odisseia no Espaço

“Flávio se aproximou depois dos realistas ingleses, mas também de Ben Nicholson”, conta a curadora. Há um exemplo abstrato que aproxima Flávio do pintor Nicholson. Na mostra, tal ressonância é visível numa tela como Summer Landscape (Paisagem de Verão, 1964) que ecoa a paisagens abstratas do artista inglês. “Essa rede de amigos do pintor é muito eclética’, observa Kiki Mazzucchelli, citando dois retratos que selecionou para a exposição: o do crítico literário e tradutor Sérgio Milliet (1951), que incluiu seu trabalho na 25.ª Bienal de Veneza (1950), e do psicanalista britânico Wilfred Bion (1973), reproduzido nesta página.

Bion (1897-1979) teve um papel decisivo no desenvolvimento da psicoterapia de grupo, que não era bem-visto por sua mentora em análise, Melanie Klein. O terapeuta inglês participou de diversos seminários no Brasil nos anos 1970, época em que Flávio de Carvalho certamente conheceu Bion, interessado que estava em trabalhos de dinâmica de grupo. Há no retrato traços de um homem tenso, retraído, mas ainda vigoroso (ele era alto e atlético) com os braços estendidos para o próximo.

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O retrato da companheira do artista, Maria Kareska (1956), soprano de origem lituana, tem igualmente nas mãos um detalhe revelador de seu interesse pelo esquematismo dos desenhos de moda – a pintura é do ano em que concebeu o New Look, traje para trazer conforto ao homem tropical, segundo justificou Flávio a sua minissaia de tecido leve. É um período em que a profusão de desenhos com nus femininos dominam sua produção.

A irreverência se acentua nos últimos anos. Há, na mostra retrospectiva, pinturas para se ver no escuro, feitas com tinta fosforescente e iluminadas por luz negra. Não são suas melhores obras, mas revelam um homem de múltiplos interesses que não recuou diante da experiência.

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